segunda-feira, 27 de julho de 2020

“Tempero da saudade” de Jô Santos. A inspiração em Tom maior.

Na minha carreira de cantor e compositor, Tom Jobim sempre marcou presença. Suas músicas faziam parte constante do meu repertório quando na noite exibia a pretensão de ser um dia uma referência.

“Wave”, “Desafinado”, “Garota de Ipanema”, “Anos dourados”, “Corcovado” entre outros clássicos desfilaram na voz dos maiores intérpretes que este país já teve. Na minha voz também.

Ser compositor nunca foi meta e estava satisfeito com a voz e o violão que dava para o gasto. Ousava algumas vezes colocar letra e acordes no papel e só faltava a inspiração.

Um dia ao receber a notícia que causou impacto no planeta: a voz e o piano do maestro resolveram precocemente deixar sem ritmo o mundo da música, a saudade veio como inspiração tão rápida que mal tive tempo de rever o texto. Surgia a minha primeira composição leve e precisa tanto quanto a harmonia de Tom:

“Sem tristeza não há acorde

Sem tristeza não há bossa

Sem tristeza não há solidão

Que resista ao amor que se foi

Que resista a dor que corrói

Que diga não ao eterno coração

Que diga não ao eterno coração

E a tristeza é o tempero da saudade

Que castiga sem piedade os contornos

Da ilusão praça de guerra

Do valente coração”.

Um dó em tom maior surgiu iniciando no tempero de uma saudade a minha história de compositor. Acalentado por um violão, dei voz a uma singela inspiração que no mestre de todas as bossas encontrou força para o pensar criativo de uma canção. “Tempero da saudade” quer saber quem vem primeiro.

Sou triste porque estou saudoso ou estou saudoso porque sou triste? A resposta Tom levou junto consigo no tempero leve dos acordes de seu piano. Hoje quando ouço minha música tocando em FM’s ficou encantado. Nas redes sociais ela também está lá com pouquíssimas visualizações, mas na espera de algum coração igual para questionar quem vem primeiro.

A tristeza ou a saudade?

Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 19 de junho de 2020 às 04h03min07s


sábado, 25 de julho de 2020

A mais bela “Conceição”. Cauby Peixoto.

Quando um dos integrantes do MPB-4 anunciou o seu nome o público já poderia esperar o melhor. Um dos grupos vocais mais importantes e dos mais talentosos do país completava 40 anos de estrada e trazia convidados para a festa. Um deles era muito especial.

Anunciado, o convidado lentamente apareceu, aproximou-se e de microfone em mãos destacou:

— Esta é a Conceição mais linda da minha vida e será.

O afinadíssimo quarteto atacou e num fá maior os acordes iniciais do violão introduziram:

 

“Conceição eu me lembro muito bem, muito bem

Vivia no morro a sonhar, vivia a sonhar

Com coisas que morro não tem, que o morro não tem não, não tem

Foi então, foi só então, que lá em cima apareceu

Alguém que lhe disse a sorrir que descendo a cidade

Ela iria subir...”

 O mestre do canto convidado completou com classe e elegância antecipado de um belíssimo bandolim:


“Se subiu ninguém sabe, ninguém viu

Pois hoje seu nome mudou

E estranhos caminhos pisou

Só eu sei que tentando a subida desceu

E agora daria um milhão para ser

Outra vez Conceição, Conceição, Conceição.”

Era Cauby Peixoto. O público foi ao delírio, eu às lágrimas. De fato aquela era a Conceição mais bela que já ouvi alguém cantar. A impressão que tive que estava diante de um dos momentos ímpares da música brasileira. O tempo da canção não chega a três minutos e foi o suficiente para ficar na minha memória feito tatuagem como na canção de Chico Buarque.

Não sei se Cauby e o grupo MPB-4 voltaram a se encontrar em palcos brasileiros, pois já com certa idade o mestre do canto já sentia a força do tempo. Cheguei a vê-lo cantando sentado sem força nas pernas, mas não na voz. Isso o tempo não lhe tirou: continuava afinada e com o mesmo vigor de outrora. Um dia sua bela voz se calou, mas não precisou de nenhum milhão para ser outra vez o Cauby de toda Conceição ou a Conceição do Cauby.

Conheci muitas damas de nome Conceição e não poderia supor que um dia me casaria com uma. Eu me casei com a mais bela de todas.

Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 19 de junho de 2020 às 03h09min57s


segunda-feira, 20 de julho de 2020

"A saudade que ficou” com Renato e seus Blue Caps. O culpado do frango.

Sempre fui atormentado por uma saudade imensa da fase de criança, principalmente a vivida em São Luís naquele ano de 1970. Nas ruas do João Paulo, corria atrás de pipa e de bola e a vida parecia linda e feliz. Bandeiras na Rua Getúlio Vargas anunciavam em verde-amarelo que era ano de Copa do Mundo. Pelé e sua turma estavam no México. Era ditadura militar, mas não sabíamos nada do que acontecia fora das quatro linhas, pelo menos eu. Irmãos Coragem parava o Brasil no horário nobre e as poucas televisões que existiam enchiam de gente para ver Tarcísio Meira e Glória Meneses arrasando corações.

Era hábito ter música alta enquanto a criançada jogava. Considerado o craque do pedaço e com apenas 10 anos decidi naquele dia ser o goleiro. Fui traído logo no primeiro lance, pois estava mais atento a uma canção que ouvia. O gol aconteceu e todos reclamaram. A bola passou e nem vi.

— Joãozinho, onde você está com a cabeça? — Fui logo demitido da função e para o banco fui escalado. Não reclamei, pois sabia da culpa de estarmos perdendo. Perder para a turma da Rua Riachuelo era quase um crime.

No corpo, acho que a cabeça não estava e sim na música que se repetia ao longe.

Até hoje me pergunto como aquela bola passou. Os culpados, descobri depois. O som do descuido foi produzido por Renato e seus Blue Caps. Tinham esse nome para imitar os grupos americanos da época. Eram os reis dos bailes e responsáveis pelo frango sofrido. Frango era a metáfora da época para um goleiro não tão bom quanto o Félix da seleção canarinho, que deixava uma bola fácil passar. Coitado do goleiro que sofresse um. Eu sofri.

Era uma canção que falava de saudade:

“Quem não tem na vida uma grande dor

Que do coração jamais se afastou

Essa dor tão ruim de alguém que não quis

Aceitar um amor tão sincero

É a dor de uma saudade que ficou

Eu também sou triste igual a você

Tive um grande amor que um dia me fez

Ser feliz como o dia que fica a esperar

Seu amor sua noite tão linda

E depois partiu pra nunca mais voltar”.

Com apenas dez anos não sei explicar que saudade era aquela. De algo que não tinha sentido ainda e que imaginava ter acontecido com aquele rapaz da canção. Só que a saudade se materializou anos depois. Seis anos depois, já com 16 anos, fui morar no Rio de Janeiro e senti na pele a dor da saudade e dos fatos. A turma do Pelé ganhou a copa. Tarcísio e Glória continuavam arrasando corações e o Brasil não vivia dias tão felizes assim.

O momento era outro e percebi aos poucos e com a consciência mais crítica que o perigo estava nas ruas. O verde-oliva da força armada estava nas ruas e guetos atrás de comunistas. O Brasil vivia momentos duros e eu com saudade da minha pacata São Luís, da turma do João Paulo e ainda tentando entender como aquela bola passou. A única certeza que tive foi uma só: a culpa do frango sofrido foi da saudade que passou junto com a bola.

Paço do Lumiar (MA), quinta-feira, 18 de junho de 2020 às 07h23min49s


domingo, 19 de julho de 2020

“Foi Deus” com Agnaldo Timótheo. E Deus criou o vento e a voz.

Um dos maiores cantores que conheci emociona pelo timbre, potência vocal e estilo. Para os puristas conceituais ser brega se confunde com ser raso. Não ter profundidade é uma questão de ponto de vista, mas sensibilidade não. É mais pessoal que coletivo.

Nas minhas impressões musicais teimo em ser puro e não necessariamente raso. A emoção que trago é produto de tudo que ouvi ao longo de quase seis décadas de vida. Ouvi pela primeira vez uma canção que vinha de um pequeno bar da Rua Dias da Cruz. Ficava no Méier, zona norte carioca por onde eu perambulava lá em 1979.

A letra e a música vinham bordadas pelo belíssimo timbre do cantor. Na verdade era uma recitação cantada que mais parecia uma oração com um coral que inicia:

“Foi Deus...

Não sei, não sabe ninguém

porque canto fado neste tom magoado de dor e de pranto

e neste tormento todo sofrimento

eu sinto que a alma cá dentro se acalma nos versos que canto

Foi Deus que deu luz aos olhos

perfumou as rosas

deu ouro ao sol e prata ao luar

Foi Deus que me pôs no peito o rosário de penas que vou desfiando e choro a cantar

E pôs estrelas no céu e fez o espaço sem fim

deu luto às andorinhas

Ai e deu-me esta voz a mim...

Foi Deus...

se canto não sei o que canto

misto de ternura saudade ventura

e talvez de amor

mas sei que cantando

sinto mesmo quando

se tenho um desgosto

e o pranto no rosto nos deixa melhor

Foi Deus que deu voz ao vento

luz ao firmamento

e pôs o azul nas ondas do mar

Foi Deus que me pôs no peito o rosário de penas que vou desfiando e choro a cantar

Fez poeta o rouxinol

pôs no campo o alecrim

deu flores à primavera

Ai e deu-me esta voz a mim...”

Composição: Alberto Janes

O meu coração foi desafiado a ouvir muitas vezes esta canção. Intérpretes outros da MPB colocaram nela voz, mas a emoção da primeira impressão sonora vinda na voz de Agnaldo Timótheo ficou para sempre. Desafio você quando estiver triste e taciturno num cantinho a ouvi-la. Talvez descubra o mesmo que eu descobri. Deus não deu voz só ao vento, escolheu Agnaldo para torná-la humana e chegar até o seu coração. O desafio está lançado e não se perturbe se chorar, faz parte do que mais bonito temos: a pureza da alma. O coração não sabe o que é brega ou não. Ele só entende de amor e de amor Deus também entende.

Paço do Lumiar(MA), quinta-feira,  18 de junho de 2020 às 05h29min01s


segunda-feira, 13 de julho de 2020

“Um homem chamado Alfredo” de Toquinho e Vinícius. O solitário da casa abaixo.

Na Rua General Belegard, no Lins, onde eu morava em 1978, três casas abaixo morava um solitário de humanos indesejáveis e recheado de felinos amigos. Era seu Antônio e as crianças da região tinham medo dele. Eu não.

Era gentil, educado e atencioso com quem por cima da grade lhe desejasse um bom dia. Seu aspecto desconfiado e vestido num velho pijama tornava sua figura alvo de várias teorias da conspiração. Alguns diziam: “esse senhor aí, não sei não”.

Pouco se sabia dele. Se era casado? Se tinha filhos? Por que criava tantos gatos? Como conseguia ser tão só? Isso me incomodava. Se era só, com quem conversava?

Ao passar, costumava encostar na grade e conversar muito com ele. O que descobri é que o único defeito que tinha era ser solitário. Ninguém sabia por que, carregava um quê de compaixão que o tornava inofensivo. Parecia culto e amável.

Uma vez ousei perguntar:

Seu Antônio, por que é tão sozinho?

 Ele sorrindo respondeu:

Não, João, não sou tão só assim. Tenho você que conversa comigo, meus gatos e a Rosa.

A Rosa? indaguei.

Sim. Peguei bebezinha e repete barbaridade:

 Antônio, Antônio, Antônio!

Ouviu?

 Realmente lá de dentro do casarão vinha um som chamando. Educadamente se despediu e entrou.

Anos depois, quando subi ao altar, vejo todo arrumado seu Antônio sentadinho no lado do noivo e fiquei feliz. Acenei para ele que me respondeu com um tímido sorriso. No final do casamento o perdi de vista para sempre. Foi a primeira vez que o vi fora da velha casa e a última também.

Vim para São Luís e escrevia para minha irmã da General. Sempre perguntava por seu Antônio. Uma das vezes ela me disse que tinha sido encontrado desfalecido em seu velho casarão só com seus amigos felinos e o velho papagaio. Nada pôde ser feito. Os vizinhos ajudaram na despedida. Triste fiquei. Lágrimas desfilavam vagarosamente por minha face.

Quando ouço “Um homem chamado Alfredo” de Toquinho e Vinícius lembro-me com carinho daquele bom homem e da sua eterna solidão. Impressionado com o realismo da letra penso: “Não seria um homem chamado Antônio?”. Os acordes suaves do violão iniciam os versos:

 

“O meu vizinho do lado

Se matou de solidão.

Ligou o gás o coitado

O último gás do bujão.

Porque ninguém o queria.

Ninguém lhe dava atenção.

Porque ninguém mais lhe abria

As portas do coração.

Levou com ele seu louro

E um gato de estimação.

Há tanta gente sozinha

Que a gente mal adivinha.

Gente sem vez para amar,

Gente sem mão para dar,

Gente que basta um olhar,

Quase nada.

Gente com os olhos no chão

Sempre pedindo perdão.

Gente que a gente não vê porque é

Quase nada.

Eu sempre o cumprimentava

Porque parecia bom.

Um homem por trás dos óculos,

Como diria Drummond.

Num velho papel de embrulho

Deixou um bilhete seu:

Dizendo que se matava

De cansado de viver.

Embaixo assinado Alfredo,

Mas ninguém sabe de quê.

(Toquinho e Vinícius)

 Trinta e poucos anos se passaram, quando olho o álbum de casamento onde eu e minha mulher estávamos em maio de 84 e vejo sentadinho lá atrás, num paletó à caráter, o seu Antônio, digo baixinho: “Eu sei o seu nome e sobrenome completos. É Antônio do Bom Coração Amigo”.

Paço do Lumiar (MA), domingo, dia 14 de junho de 2020 às 09h12min06s


sábado, 11 de julho de 2020

“O mestre sala dos mares”. O João das Minas Gerais.

A impressão que tive do cantor, compositor e violonista mineiro João Bosco foi a melhor possível. Quando as rádios de São Luís começaram a tocar sua música de alta qualidade percebi que violão e voz pareciam almas siamesas.

Era início dos anos setenta e muita gente boa surgia. Via festivais da canção ou por meio de trilhas sonoras globais. João de barba trazia um violão ritmado e cada nota obedecia fielmente aos improvisos vocais com graça e criatividade. Balanço nem se fala. Com uma rapidez extraordinária, nenhum espaço vazio ficava nos limites do conceito de música: melodia, ritmo e harmonia eram íntegros.

A letra e a música de “O mestre sala dos mares” traziam a história além de ritmo e uma percussão casada com um violão de tirar o fôlego:

 

“Há muito tempo nas águas da Guanabara

O dragão do mar reapareceu

Na figura de um bravo feiticeiro

A quem a história não esqueceu

Conhecido como o navegante negro

Tinha a dignidade de um mestre sala

E ao acenar pelo mar

Na alegria das regatas

Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas

Jovens polacas e por batalhões de mulatas ...

 

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias

Glória à farofa, à cachaça, às baleias

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa história não esquecemos jamais

Salve o navegante negro

Que tem por monumento as pedras

Pisadas do cais.”

(João Bosco e Aldir Blanc)

Cavaquinho, violão, pandeiro, tamborim e outros instrumentos se juntam para transformar essa canção numa das pérolas da nossa música popular brasileira.

Uma dia, lá pelos anos 80, vindo da Praça XV atravessava a Baía de Guanabara indo para Niterói e escutei no alto a voz de Elis Regina mandando bem nesta canção. No final pude ver de perto as pedras pisadas do cais e tive saudade da boa música que ouvia em São Luís. Cantei baixinho enquanto a barca deslizava pelas calmas águas: “Mas faz muito tempo”.


segunda-feira, 6 de julho de 2020

“Quantas lágrimas” de Cristina Buarque de Holanda. Madalena canta a desconhecida.

Toda manhã minha mãe Maria Madalena penteava as longas madeixas negras e cantava:


“Ai, quantas lágrimas eu tenho derramado

Só em saber que não posso mais reviver o meu passado

Eu vivia cheio de esperança e de alegria

Eu cantava, eu sorria

Mais hoje em dia eu não tenho mais

A alegria dos tempos atrás

A melancolia dos meus olhos trazem

Ai quanta saudade a lembrança traz

Se houvesse retrocesso na idade

Eu não teria saudade da minha mocidade”.

Fico até hoje impressionado com esta música e mais impressionado ainda com minha mãe que repetia várias vezes os versos. Onde ela aprendeu essa música? Como aprendeu? Com quem? Eu nunca soube. Muito pequeno ainda, pois era 1969 e com apenas 9 anos me limitava a ouvir e gostar.

Só sei que gostava muito. Era um samba que iniciava com uma marcação magistral de um pandeiro e depois entrava um violão com baixo marcante. A voz da cantora entrava a seguir.

Era Cristina Buarque de Holanda, soube mais tarde. Madalena conhecia a canção sem conhecer a cantora. Pouco se sabia dela. Tinha voz bonita e afinada.

Perguntei aos mais velhos. Ninguém conhecia. Era uma desconhecida. Alguém lembrou que pelo sobrenome seria parente de alguém conhecido. Seria do famoso homem das letras do vocabulário, afinal todos o consultavam. Fiquei no ar sem entender. Acho que falavam do Aurélio Buarque de Holanda, o homem do dicionário.  

Nas rodinhas de violão da turma da rua onde os mais velhos tocavam “Vendi os bois” dos Incríveis e “Animais irracionais” de Dom e Ravel ninguém sequer havia sido informado de uma sambista chamada Cristina. Conheciam Elizeth Cardoso da “vista assim do alto mais parece um céu no chão” e a voz rouca e forte de Elza Soares na célebre “lá vem a bateria da Mocidade Independente não existe mais quente...”

Era mesmo desconhecida. O mais interessante é que Madalena não chorava e nem derramava um gesto sequer de tristeza. Invocado perguntei: a música não lhe faz chorar? Ela respondeu que não e só trazia boas lembranças da sua infância que logo eram relatadas  com riqueza de detalhes. Tempos no Piauí que jamais esquecera.

Maria Madalena era de José de Freitas e meu pai Severino de Guarabira na Paraíba e eu era grato pelo dom da vida, mas nunca soube direito como esses dois se encontraram lá pras bandas do Piauí. Havia muita prosa a respeito dos mais velhos e criança não ficava por perto para bisbilhotar.

Era demais para uma cabeça de nove anos. O tempo passou e continuo sem saber por onde Cristina anda. Será irmã daquele famoso compositor carioca? Continua contando ou cantando as lágrimas?

Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 12 de junho de 2020 às 07h7min02s


domingo, 5 de julho de 2020

Nonato ou Renato? Os reis do baile

Era 1975 e só de ouvi-los à distância já dava vontade de sair dançando e cantando. A Eletrônica Satélite na Rua Getúlio Vargas fazia o populoso bairro do João Paulo acordar com alegria ao som de Nonato e Seu Conjunto, principalmente aos sábados. O som era alto mesmo. Seu Walter, o proprietário, tinha a melhor radiola da região e além dos consertos desses equipamentos gostava de exibir seu poderio bélico sonoro. Os vizinhos jamais reclamavam e enchia o ar de alegria e ritmo.

O grupo musical maranhense Nonato e Seu Conjunto reinava absoluto nos salões de festas dos clubes sociais da época. Na São Luís dos anos 70 tinham vários: Montese, Cassino Maranhense, Jaguarema e Lítero Recreativo Português. Em todo bom baile lá eles estavam animando e botando todo mundo pra dançar. “Caçoeira”, “Tambor de crioula”, “Cafua”, “Chegadinho”, “Do terreira”, e algumas românticas para dançar coladinho tipo “Não adianta mais promessa” entre outras. Todas autorais, além dos sucessos nacionais da época muito bem reproduzidos.

O problema é que com o tempo o som de Nonato, cada vez mais conhecido, se confundia com um grupo musical carioca que também fazia sucesso: Renato e Seus Blue Caps. Sonoridades aproximadas e eu já fazia confusão com os nomes. Quem canta? Nonato ou Renato?

Renato atacava nas rádios AM com um arsenal de primeira: “Playboy” e “A primeira lágrima”. Nonato com “Sou feliz” e “Ana Paula”.

Com 15 anos eu só queria saber onde seria o próximo bailinho, pois já estava me candidatando ao posto de pé de valsa da Rua São Vicente de Paulo. As garotas estariam lá e as músicas tinham que ser boas e dançantes. Toda sexta tinha que saber se alguém estaria fazendo aniversário por ali. Certamente teria festa familiar com móveis afastados da sala.

O som do maestro Nonato impressionava pela qualidade sonora de seus músicos que pareciam tocar bem ali pertinho da gente. Os dois discos lançados: “Nonato e Seu Conjunto” (1974) e “O som e o balanço de Nonato” (1975) faziam o Maranhão ser notícia na região e além-fronteira nordestina, pois até pras bandas do Piauí e Ceará já eram conhecidos. Gostava do vocal de Walber e Oberdan Oliveira, a bateria ritmada, os metais, o som de órgão, as guitarras, o baixo e o vibrafone. Era um som maranhense muito bom de ouvir, cantar e dançar. Alguns integrantes eu sabia o nome, pois na capa do primeiro vinil lá estava a turma com nome e respectivo instrumento.

Em 1976 fui para o Rio tentar a vida. Jamais esqueci esse som que para sempre ficou em minha memória. As festas, meus amigos e a saudade da minha terra na voz de Nonato e Seu Conjunto. No ônibus da Itapemirim seguia solitário pela última fronteira em Caxias quase Piauí. Mais um pouco de estrada ali não seria mais Maranhão. Não tinha mais volta e comecei a cantar baixinho:


“Nas ruas dessa cidade dos azulejos quero passar.

Filho nasce em São Luís filho coração desperta filho sente que é feliz neste berço de poetas.”

(Morada)


“Ele é de 1800 eu não tinha nem nascido é tão velho quanto as rugas que pregou em sua pele de sol, ele é o pai do pai do meu pai...”

(Bisavô)


“Sei que o erro é humano eu pensei e não me engano eu já sou demais pra ti... Não te pertence mais o meu coração, oh que já é demais a solidão, a solidão...”

(Não precisa mais promessa)


“Vai, a lua no céu sumindo eu já vou indo que as filas do mercado central me esperam desesperam meu chegar e o bruto não foi pescado aqui na beira é peixe do alto mar é de caçoeira, graúdeira leluia...

(Caçoeira)


“Ana vive a rezar pro seu criador poder lhe chamar...”

(Senhora Ana)


“Negro cantou, sofreu, gemeu negro lembrou, sofreu, chorou

 Cafua não teve dó de negro não...

(Cafua)

 

“Quem ainda não viu tambor de crioula do Maranhão afinado a fogo...”

(Tambor de crioula)

Anos depois voltei ao meu velho Maranhão e já sabia distinguir a sonoridade maranhense da carioca. Eu já sabia quem era Nonato e quem era Renato. Seu Nonato um dia nos deixou e foi tocar com João do Vale no céu. O carioca Renato continua na estrada.

Aos sábados ouço o som de Nonato e Seu Conjunto. Os vizinhos também, mas ninguém reclama e olho para o céu azul do Maranhão cantando: “Oh! dá licença minha gente eu vou-me embora eu vou-me embora, já está chegando a aurora eu vou-me embora mais um dia volto aqui se Deus quiser, Jesus e a dona da casa.”

Paço do Lumiar (MA), 11 de junho de 2020 (quinta feira) às 09h 03 min 59s