Na Rua General Belegard, no Lins, onde eu morava em 1978, três casas abaixo morava um solitário de humanos indesejáveis e recheado de felinos amigos. Era seu Antônio e as crianças da região tinham medo dele. Eu não.
Era gentil, educado e atencioso com quem por cima da grade lhe desejasse um bom dia. Seu aspecto desconfiado e vestido num velho pijama tornava sua figura alvo de várias teorias da conspiração. Alguns diziam: “esse senhor aí, não sei não”.
Pouco se sabia dele. Se era casado? Se tinha filhos? Por que criava tantos gatos? Como conseguia ser tão só? Isso me incomodava. Se era só, com quem conversava?
Ao passar, costumava encostar na grade e conversar muito com ele. O que descobri é que o único defeito que tinha era ser solitário. Ninguém sabia por que, carregava um quê de compaixão que o tornava inofensivo. Parecia culto e amável.
Uma vez ousei perguntar:
— Seu Antônio, por que é tão sozinho?
— Não, João, não sou tão só assim. Tenho você que conversa comigo, meus gatos e a Rosa.
— A Rosa? — indaguei.
— Sim. Peguei bebezinha e repete barbaridade:
— Ouviu?
Anos depois, quando subi ao altar, vejo todo arrumado seu Antônio sentadinho no lado do noivo e fiquei feliz. Acenei para ele que me respondeu com um tímido sorriso. No final do casamento o perdi de vista para sempre. Foi a primeira vez que o vi fora da velha casa e a última também.
Vim para São Luís e escrevia para minha irmã da General. Sempre perguntava por seu Antônio. Uma das vezes ela me disse que tinha sido encontrado desfalecido em seu velho casarão só com seus amigos felinos e o velho papagaio. Nada pôde ser feito. Os vizinhos ajudaram na despedida. Triste fiquei. Lágrimas desfilavam vagarosamente por minha face.
Quando ouço “Um homem chamado Alfredo” de Toquinho e Vinícius lembro-me com carinho daquele bom homem e da sua eterna solidão. Impressionado com o realismo da letra penso: “Não seria um homem chamado Antônio?”. Os acordes suaves do violão iniciam os versos:
“O
meu vizinho do lado
Se
matou de solidão.
Ligou
o gás o coitado
O
último gás do bujão.
Porque
ninguém o queria.
Ninguém
lhe dava atenção.
Porque
ninguém mais lhe abria
As
portas do coração.
Levou
com ele seu louro
E
um gato de estimação.
Há
tanta gente sozinha
Que
a gente mal adivinha.
Gente
sem vez para amar,
Gente
sem mão para dar,
Gente
que basta um olhar,
Quase
nada.
Gente
com os olhos no chão
Sempre
pedindo perdão.
Gente
que a gente não vê porque é
Quase
nada.
Eu
sempre o cumprimentava
Porque
parecia bom.
Um
homem por trás dos óculos,
Como
diria Drummond.
Num
velho papel de embrulho
Deixou
um bilhete seu:
Dizendo
que se matava
De
cansado de viver.
Embaixo
assinado Alfredo,
Mas
ninguém sabe de quê.
(Toquinho e Vinícius)
Paço do Lumiar (MA),
domingo, dia 14 de junho de 2020 às 09h12min06s
Que lembrança bonita, João! Não me recordo dessa música do Tom e Vinicius. Pela letra parece realmente remeter ao seu contato com o Sr. Antônio, que vivia de modo estranho, até podendo parecer suspeito à maioria da vizinhança. Só que você, em sua intuição questionadora, pode constatar a bela pessoa que existia naquele ser estranho. Seus motivos por ele viver solitário você não pode conhecer. Talvez por você ser ainda tão jovem, ele não tenha se sentido à vontade de expô-los. O fato dele estar presente em seu casamento foi a maior demonstração do quanto você foi luz na solidão do Sr. Antônio, esse homem estranho e gentil. É triste a forma como ele se foi, sem que nunca ninguém soubesse o porquê de uma vida tão só.
ResponderExcluirObrigado, Dayse pelo comentário. O incrível é que seu Antônio estava na São Jaime em maio de 1984 e você também. Vocês estavam próximos. Seu Antônio me marcou pela solidão e pela gentileza ao falar; falava baixo e com voz doce. Era muito misterioso e nada se sabia dele. Só da solidão. Morreu sozinho com seus bichinhos e me deixou bem triste. Várias vezes o convidei para ir lá em casa. Agradecia, mas recusava. Uma pessoa marcante na minha vida.
Excluir