segunda-feira, 20 de julho de 2020

"A saudade que ficou” com Renato e seus Blue Caps. O culpado do frango.

Sempre fui atormentado por uma saudade imensa da fase de criança, principalmente a vivida em São Luís naquele ano de 1970. Nas ruas do João Paulo, corria atrás de pipa e de bola e a vida parecia linda e feliz. Bandeiras na Rua Getúlio Vargas anunciavam em verde-amarelo que era ano de Copa do Mundo. Pelé e sua turma estavam no México. Era ditadura militar, mas não sabíamos nada do que acontecia fora das quatro linhas, pelo menos eu. Irmãos Coragem parava o Brasil no horário nobre e as poucas televisões que existiam enchiam de gente para ver Tarcísio Meira e Glória Meneses arrasando corações.

Era hábito ter música alta enquanto a criançada jogava. Considerado o craque do pedaço e com apenas 10 anos decidi naquele dia ser o goleiro. Fui traído logo no primeiro lance, pois estava mais atento a uma canção que ouvia. O gol aconteceu e todos reclamaram. A bola passou e nem vi.

— Joãozinho, onde você está com a cabeça? — Fui logo demitido da função e para o banco fui escalado. Não reclamei, pois sabia da culpa de estarmos perdendo. Perder para a turma da Rua Riachuelo era quase um crime.

No corpo, acho que a cabeça não estava e sim na música que se repetia ao longe.

Até hoje me pergunto como aquela bola passou. Os culpados, descobri depois. O som do descuido foi produzido por Renato e seus Blue Caps. Tinham esse nome para imitar os grupos americanos da época. Eram os reis dos bailes e responsáveis pelo frango sofrido. Frango era a metáfora da época para um goleiro não tão bom quanto o Félix da seleção canarinho, que deixava uma bola fácil passar. Coitado do goleiro que sofresse um. Eu sofri.

Era uma canção que falava de saudade:

“Quem não tem na vida uma grande dor

Que do coração jamais se afastou

Essa dor tão ruim de alguém que não quis

Aceitar um amor tão sincero

É a dor de uma saudade que ficou

Eu também sou triste igual a você

Tive um grande amor que um dia me fez

Ser feliz como o dia que fica a esperar

Seu amor sua noite tão linda

E depois partiu pra nunca mais voltar”.

Com apenas dez anos não sei explicar que saudade era aquela. De algo que não tinha sentido ainda e que imaginava ter acontecido com aquele rapaz da canção. Só que a saudade se materializou anos depois. Seis anos depois, já com 16 anos, fui morar no Rio de Janeiro e senti na pele a dor da saudade e dos fatos. A turma do Pelé ganhou a copa. Tarcísio e Glória continuavam arrasando corações e o Brasil não vivia dias tão felizes assim.

O momento era outro e percebi aos poucos e com a consciência mais crítica que o perigo estava nas ruas. O verde-oliva da força armada estava nas ruas e guetos atrás de comunistas. O Brasil vivia momentos duros e eu com saudade da minha pacata São Luís, da turma do João Paulo e ainda tentando entender como aquela bola passou. A única certeza que tive foi uma só: a culpa do frango sofrido foi da saudade que passou junto com a bola.

Paço do Lumiar (MA), quinta-feira, 18 de junho de 2020 às 07h23min49s


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