terça-feira, 30 de junho de 2020

“O Pato” de João Gilberto. Em busca do aplauso perdido.

A noite de sexta-feira chegava com lua prateada no centro de São Luís, onde o Restaurante Mag’s se preparava para receber seus finos clientes. Era 1988 e eu era atração musical da MPB de violão e voz no belíssimo lugar com toalhas rendadas até o chão. Público exigente com cardápio, ambiente e música. Um cartaz exibia: “JÔ SANTOS, a voz e o violão”. Os bares e restaurantes da cidade tinham cardápio musical variado por ali e muita gente boa estava surgindo na cena noturna de São Luís do Maranhão.

Pluguei a viola e preparei a voz para pontualmente começar os trabalhos naquela noite às 21 horas. O senso de um músico, quando toca num lugar onde todos comem indiferentes ao invisível cantor ali na frente, vai direto no aplauso que naquela noite parecia que tinha tomado chá de sumiço. Mas quem canta na night, às vezes, se contenta com um simples olhar ou quem sabe algo mais revelador: o aplauso.

Tentei de tudo um pouco, porém a indiferença reinava e tinha vindo pra ficar naquela noite. Nem uma palminha para contar história. O restaurante Mag’s, situado na Rua Rio Branco, estava quase na esquina da praça mais central e mais conhecida de São Luís, a Praça Deodoro e tinha fama de ser um dos melhores da ilha. Fui contratado depois de um teste por Fernando Galotte, um empresário carioca que junto com sua mulher goiana Marilene não estavam no Maranhão a passeio. Com um copo de uísque na mão, o sujeito era uma cópia do Miéle, famoso artista global. Tinha voz grossa alta e grave, porém educadíssimo no trato com pessoas e tinha verdadeira paixão pelas artes culinárias. Era mestre nesse setor. O nome Mag’s era uma homenagem a Dona Marilene.

Noite adentro tentei Cartola e até Milton. Vi meu verão terminando e nada das rosas exalarem algum aplauso. A travessia agonizava e a voz queria parar antes da estrada findar. Apelei para Fagner. Nem aplausos, nem canteiros.

As cortinas já estavam quase baixando, pratos e taças sendo recolhidos e eu perseguindo o aplauso perdido, o objetivo maior de qualquer artista. Quase jogando a toalha fiz uma última tentativa e apelei para uma do bom baiano João Gilberto:


“O Pato vinha cantando alegremente quém, quém

quando o marreco sorridente pediu

para entrar também no samba no samba no samba

O ganso gostou da dupla e fez também quém, quém, quém

Olhou pro cisne e disse assim, vem vem

Que o quarteto ficará bem, muito bom, muito bem

Na beira da lagoa foram ensaiar

para começar o tico-tico no fubá

A voz do pato era mesmo um desacato

Jogo de cena com ganso era mato

Mas eu gostei do final quando caíram n’água

Ensaiando o vocal

Quém, quém, quém

Quém, quém, quém

Quém, quém, quém

Quém, quém, quém."

O restaurante veio abaixo. Aplausos e até assovios. O patrão já com algumas e outras, de taça em punho, exigiu bis. Feliz e realizado com a casa cheia, gorjetas vastas e um aplauso no final.

Sussurrei baixinho: “Eta! João, fico devendo essa”. Clientes se despedindo e o show acabou. Já era madrugada e Fernando me chama para jantar com ele um filé com um bom vinho tinto e repetindo um “quém, quém, quém” que parecia ecoar na casa.

Jô, como sempre, arrasou disse ele. Sorri aliviado e agradeci.

Peguei a viola, o cachê, ego resgatado e fui cantarolando baixinho para o meu destino por ruas vazias da adormecida São Luís:

O pato vinha cantando alegremente...

Paço do Lumiar (MA), 11 de junho de 2020 (quinta feira), às 01h 12min 33s


sábado, 27 de junho de 2020

“Boca Livre” na Maia Lacerda. A namorada carioca.

O bom de ter uma namorada é o fato de sempre ter um lugar legal para ir, principalmente aos sábados e quem sabe ficar para o rango. Como um retirante maranhense que veio para o Rio tentar a vida e quem sabe voltar para a terrinha, ter uma namorada carioca parecia jogar as âncoras e preparar as raízes.

Eu já tinha uma. Morava no tradicional bairro do Estácio, reduto de bambas do samba pelo que fiquei sabendo. Pele clarinha, jeito meigo e de fala mansa ela tinha um gosto musical alternativo e refinado para os padrões do senso comum vigente.

Foi através dela que aprendi a ouvir o som de quatro caras. Um grupo formado em 1978 por Maurício Maestro (baixo e vocal), Zé Renato (voz e violão), Cláudio Nucci (voz e violão) e David Tigel (viola 10 cordas e vocal). Arrebentavam tanto no instrumental quanto na voz. O disco, que no som rolava, era de vinil de um equipamento potente do meu futuro cunhado Sérgio. Um violão e uma viola abrem os trabalhos com uma voz afinadíssima de um deles. Depois fazem juntos:


Vem morena ouvir comigo essa cantiga, 

sair por essa vida aventureira, 

tanta toada eu trago na viola, 

pra ver você mais feliz 


escuta o trem de ferro alegre a cantar 

na reta da chegada pra descansar, 

no coração sereno da toada bem querer...”

O som parecia vir da fazenda e logo me achei petrificado na interpretação da moça linda que perto de mim cantava baixinho. Pedi para repetir e vi como o grupo já era admirado pelo pessoal da casa. Dona Yolanda, mãe da moça e quem sabe futura sogra, alertou para almoço pronto. Ao ser puxado para a cozinha meio sem jeito e deslocado, perguntei para a moça o nome do grupo que nós havíamos escutado e ela respondeu: Boca Livre.

Paço do Lumiar (MA), 10 de junho de 2020 (quarta feira) às 23h 33min 09s


terça-feira, 23 de junho de 2020

Peter Frampton versus Jimi Hendrix. Santa ignorância.

Entre a turminha que se reunia aos sábados na Baronesa de Uruguaiana, 42 no Lins de Vasconcelos no Rio de Janeiro ao final da tarde, o papo não era outro. Garotas, músicas novas no violão e os nomes que estavam na moda. Pouco ou quase nada se sabia direito dos caras que dominavam as guitarras e levavam as garotas ao delírio.

A maioria tinha 14 anos e os mais velhos já tinham completado 17. Cada um mostrava o que tinha aprendido durante a semana para se exibir nas cordas e impressionar a galera e quem sabe as garotas.

No grupo de jovens da Paróquia São Jaime um nome começou a circular nos suspiros femininos. De ouvidos ligados nelas se sabia que um cara louro, cabeludo de voz aguda, roupas brilhantes e guitarra vibrante: fazia sucesso.

Com pesquisa digna de um FBI descobrimos que era um americano e que quando jogava a longa cabeleira para um lado e para o outro levava as meninas junto. Era Peter Frampton e as garotas cantavam em coro: “Shadows grow so long before my eyes and they’re moving across the page Suddenly the day turns into night far away, from the city but don’t hesitate cause your love,  won’t wait ... Oh, baby I love your way...”.

Uma ponta de inveja e admiração apareceu no coração e nos dedos da turma. Alguém desdenhou: “sou mais Jimi Hendrix”. Com uma ignorância de chorar outro falou: “Esse aí é louro também? Toca guitarra? É americano? Tem algum sucesso estourado? Onde vive?”.

O cara era inglês, tocava a guitarra até de costas para as cordas e era negro. Jimi não era o melhor. Segundo se apurou depois era o maior. Era, pois já não estava entre nós. Morreu precocemente, dizem alguns aos 27 anos no início dos anos 70. Mas o ano que estávamos era 1977.

“Hey, Joe” era estourada em todos os cantos do planeta. Os caras mais velhos, de 18 para frente, já sabiam disso, da existência de Hendrix e mandavam no violão:

                                   “Hey, Joe where you goin’ with that gun of your hand?      

Hey, Joe, I said where you goin’ with that gun in your hard, oh...”

Não convenceu. Nós queríamos tocar mesmo era igual ao tal Peter, pois era dele que as garotas de 14 anos, até no máximo 18, gostavam. Era onde estávamos. Era a nossa geração. O outro parecia um ser improvável e difícil de ser imitado. Não com tal qualidade. Mal sabíamos fazer a introdução de algumas músicas e longe estávamos. Tudo que era festinha lá tinha um coro feminino:


“I wonder how you’re feeling There’s ringing in my ears

 And no one to relate to ‘cept the sea, Who can I believe in...”

Eu tinha 16 anos e o violão que eu tocava nas missas precisava ser aprimorado. Comecei a pesquisar o som do Peter. Descobri uma canção estilo romântica que me marcou para sempre e tinha mais a ver com a sonoridade que buscava. Bati cada nota até o dedo sangrar:


“I don’t care where I ago when I’ m in with you

When I cry you don’t laugh Cause you know me

I’m in you - You’re in me

I’m in you – You’re in me

Cause you gave  me the love

The love that I never had Yes you gave me the love,

The love that  I never had

You and I don’t pretend, we make love.

I can’t feel anymore than I’m singing...

O tempo deslizou e não namorei ninguém da São Jaime. Hendrix, mesmo nos deixando em 1970, ainda faz o cabeção dos roqueiros. Peter desafia a guitarra tão bem quanto outrora e continua na estrada com grisalhos curtos.

Eu continuo tocando violão e sangro o dedo atrás dos acordes mágicos de “I’m in you”. E para finalizar: Hendrix era norte-americano de Seattle, fã do rei do rock Elvis Presley e fez muito sucesso na terra dos Beatles onde viveu grande fase de fama e desencontros.


sábado, 20 de junho de 2020

O padre e a Legião Urbana. Pais e filhos. A despedida.

Padre Maurício terminou a comunhão e aproveitei para mandar o Canto de Ação de Graças logo após, com violão em punho e a voz desconfiada. Era “Pais e filhos” da Legião Urbana. Estouradíssima nas rádios nos anos 80, a banda era muito conhecida da geração coca-cola. Com espanto o padre observa a entrada fulminante de jovens que adentraram a Igreja sem acreditar no que ouviam e formaram um coral extraordinário. Como consegui trazer aquela galera para o final da missa nem eu sei explicar. E a igreja virou um som só:


“Meu filho vai ter nome de santo, quero o nome mais bonito, é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar na verdade não há. Me diz por que o céu é azul, explica a grande fúria do mundo, são meus filhos que tomam conta de mim ...”

      No final, aplausos e até assovios e a espera por uma bronca, afinal sem autorização toquei na missa, num momento sagrado, uma canção do mundo, pra não dizer profana. Para minha surpresa Maurício com sotaque de francês do Canadá disse: “Que bela canção, Batista. É sua?”. Com um aceno disse não. Provavelmente Maurício ainda não conhecia Renato Russo.

Era final de outubro de 1990, domingo à noite. Foi a última vez que o vi. Sem saber nos despedimos para sempre e fui para casa. Morava no Maiobão em Paço do Lumiar-MA e tocar nas missas aos domingos com os belíssimos ensinamentos do padre canadense que adotou o Maranhão nos últimos anos de sacerdócio era uma bênção. Era engraçado porque ele dizia: “A benção de Deus esteja convosco”. No nosso café antes dessa missa eu o tinha orientado que era bênção. Ele não conseguia pronunciar como paroxítona em português e insistia em benção oxítona. E no final das missas me olhava, ria e dizia: “a bênção...”, eu acenava positivo. Ora, ele falava francês, tinha que dar um desconto.

Dias depois já em novembro soube que estava doente e hospitalizado. Lutava pela vida. Como? Não sei. Um outro padre celebrou no domingo seguinte e pedia orações por ele.

Dias depois um amigo da paróquia bate palmas cedinho e me chama. Assustado por ser muito cedo, desconfiei do chamado num sábado:

— Batista, Batista! Pegue seu violão e vamos para a Igreja. Maurício nos deixou.

A ansiedade e a surpresa tomaram conta da voz, do coração e das pernas que insistiram em tremer.

— Como?

Deixei minha mulher e minha pequenina filha. Numa frase minha mulher resumiu o momento:

— Vai, ele precisa de você.

No Maiobão a notícia correu. Um bairro gigante dentro da pequena Paço do Lumiar, uma das quatro cidades que formam a região metropolitana, além de São Luís (a capital do Maranhão), Raposa e São José de Ribamar. O choro andou e rolou solto. Com simplicidade e carisma esse padre havia conquistado a comunidade e parecia que órfãos teríamos ficado.

Eu não tive opção. Com lágrimas nos olhos, cantei:


“Dorme agora, é só o vento lá fora.

Quero colo, vou fugir de casa

Posso dormir aqui com vocês?

Estou com medo, tive um pesadelo...”

          Nunca mais o Maiobão foi o mesmo. A Igreja Sagrada Família idem. Eu, idem.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Parnamirim apresenta o som de Pernambuco: Banda de Pau e Corda

Em novembro de 1976, quando batia uma pelada com amigos na Rua Caiapó, quase à noitinha, vejo uma pessoa que parecia conhecida aproximando e chamou-me pelo nome. “Joãozinho, onde fica a casa do seu Josué seu tio?”. Espanto porque poucos assim me chamavam; só o pessoal do Maranhão e surpresa por ser o Olival, meu cunhado, que há anos não via. Sabia que estava morando com minha irmã mais nova lá pras bandas do Rio Grande do Norte. Na Caiapó, rua das peladas noturnas no Lins de Vasconcelos, a turma se despedia para novo encontro no dia seguinte. Era noite no Rio de Janeiro e já estava na hora de para casa voltar.

Morava com meus tios e ao retornar ouvi uma proposta do Olival que era militar da Aeronáutica. Ia fazer um curso no Rio e precisava de alguém para ficar com minha irmã no Rio Grande do Norte, pois tinham filho pequeno. Aceitei na hora, pois estava sem escola e trabalho no momento e vislumbrava uma possibilidade.

Quando percebi já estava no Santos Dumont dentro de um avião rumo a Parnamirim, no Rio Grande do Norte. Encontrei minha irmã e meu sobrinho. A cidade era uma belíssima vila militar e se orgulhava de ter sido útil na 2ª Guerra Mundial. O engraçado é que parte dos moradores chamavam a cidade de Eduardo Gomes, um brigadeiro famoso. Parnamirim ficou na memória.

Olival voltou do Rio e pediu que eu ficasse mais um pouco até dezembro. Em Parnamirim mostrou-me um vinil de um grupo da sua terra: Banda de Pau e Corda. Olival é pernambucano de Petrolândia. A Banda pernambucana fazia um som com violas, flautas e percussão com sotaque característico do lugar e um repertório autoral recheado de recados regionais. A música que mais me impressionou foi uma que falava de Lampião, o rei do cangaço. Quando morava em São Luís já havia escutado algumas vezes, entretanto não sabia quem interpretava. A voz e os instrumentos de percussão tinham na flauta um lamento que fazia a lágrima descer. Parecia uma oração. Começa com um violão de primeira com um solo de violas ao fundo:


“Ei, cangaceiro, onde mora Lampião?

Mora junto de São Pedro e contando a região.

Sertão, meu sertão, onde está Lampião?

O famoso cabra da peste e Maria sua paixão.

Nasceu na terra de valente.

Você recado de gente de cara valente que nem Lampião

Não tem nem mais cavalo e nem sela e seu maço de vela já parou de queimar...”

 A partir daí entra um som típico das regiões nordestinas com pífaros, violas, violões e instrumentos de percussão muito usados no sertão como sons de pássaros. Uma obra de arte.

Voltei para o Rio depois de agradecer a oportunidade de conhecer Parnamirim, ou como queiram Eduardo Gomes, e rever minha irmã piauiense, meu cunhado pernambucano e meu pequenino sobrinho maranhense e ficar impressionado com o som da tal banda.

No caminho para o aeroporto, no velho fusca verde do meu cunhado, ouço Adelson Alves da Rádio Roquette Pinto do Rio anunciar: “Vocês ouviram a belíssima 'Flor d’água' com a Banda de Pau e Corda de Recife”. Olhei para Olival e disse: “essa você não me falou”. Discreto e de poucas palavras ele respondeu: “E deu tempo?”.

Depois disso nunca mais voltei ao Rio Grande do Norte. Já em casa no Rio olho pro meu irmão mais velho um pouco e de poucas palavras, porém piauiense: “Você já ouviu falar da Banda de Pau e Corda?”. "Banda de Pau e quê?", retrucou e eu disse: "de corda". O não veio como resposta rápida tipo bala de bandido nos velhos filmes de faroeste.

Um dia disse que ia casar e já tinha um destino. Pensei Teresina, São Luís ou quem sabe ficar aqui no Rio mesmo.

Anos depois ele se casou. A moça era pernambucana. Separou e depois se casou pela segunda vez com outra pernambucana. Hoje mora em Recife onde curte a mulher e o filho pernambucano.


sábado, 13 de junho de 2020

As “velas içadas” de Ivan vão parar no Lins

Impressionado com a minha capacidade de mudar de um lugar para o outro, Guilherme, meu amigo da Travessa Narceja em frente à Paroquia São Jaime no Lins, perguntou-me por onde eu andava. Eu disse que estava meio sem paradeiro, morando aqui morando ali, e que no momento não tinha um lugar certo.

Certo mesmo era ir para a escola noturna tentar concluir o tal do 2º grau. No Colégio Francisco Campos, no Grajaú, fiz amigos e em especial uma moça da pele clarinha de sorriso lindo, meigo e doce. Era educadíssima e falava baixo e pouco. Ficamos grandes amigos a ponto de nos preocuparmos um com o outro quando na escola não aparecia.

Consegui um emprego de zelador de uma Igreja no bairro do Rocha e o padre me ofereceu um quartinho para morar. Era outubro de 1979 e já era alguma coisa. Ter um endereço, um salário e o rango de graça com direito ao café da manhã estava do jeito que eu gostava. O contrato era de três meses e sei que em dezembro voltaria a não ter paradeiro.

De vez em quando eu sumia da escola e quando eu retornava lá estava ela a me perguntar por onde eu andava. Com firmeza falei orgulhoso o endereço que agora tinha.

Ah, estou morando na Rua Ana Nery, 1114 no Rocha.

Ela anotou e disse que um dia iria me escrever uma carta, caso não nos víssemos mais nas férias. 

Nossos papos eram ótimos, ficávamos o recreio inteiro conversando sobre música e nossas ansiedades de futuro, carreira, trabalho e família. Mas música nos unia pelo mesmo gosto e afinidades sonoras. De longe alguém comentou: “esses dois estão namorando”. Era só amizade.

Em novembro nos despedimos esperando a ano seguinte para enfim ir para o 3º ano e pegar o tal diploma, patamar para um momento melhor, segundo meu professor Nilo que ensinava a sofisticada Física como se fosse um passatempo.

No ano seguinte, morando aqui morando ali de novo, reencontrei a moça que disse que tinha escrito uma carta para mim. Como não estava mais no Rocha e perambulava pelo Lins novamente dormindo ali e tomando café acolá, imaginei que a carta ainda estava com ela. De fato foi devolvida e a recebi em mãos. Era uma carta em forma de canção de amor. Um belíssimo texto de Ivan Lins e Vítor Martins e eu que da dupla só conhecia “Madalena” imortalizada pela talentosíssima Elis Regina, a pimentinha gaúcha.                                                                                               


“Seu coração é um barco de velas içadas,

Longe dos mares do tempo, das loucas marés.

Seu coração é um barco de velas içadas,

Sem nevoeiros, tormentas, sequer um revés.

Seu coração é um barco jamais navegado,

Nunca mostrou-se por dentro

Abrindo os porões...”

Ao encontrá-la à noite na escola, sentando lado a lado e impressionado com o nível do texto, ouvi dos seus lábios puros e rosados a frase:

É assim que eu te vejo: livre.

Com o texto na mão agradeci silenciosamente e retornei feliz e apaixonado para o lugar por onde sempre perambulava. Em abril de 1980, um beijo na Quinta da Boa Vista selou mais que amizade. A frase “esperei tanto por esse beijo” dito na sua voz ecoa no meu ouvido até hoje. Quatro anos se passaram e me tornei professor. Em 1984, subimos ao altar e casamos. Era maio e o lugar Ivan nem desconfia que traz no sobrenome. Hoje tenho um endereço, um grande amor e meu barco já ancorou.


segunda-feira, 8 de junho de 2020

Quem diria? Sarah acabou no Lins! Balthazar, o encontro.

Era domingo e minha irmã mais velha acordou-me cedo e disse: “menino, vamos conhecer o nosso novo endereço”. Como? Há pouco tempo tínhamos mudado da casa dos meus tios Josué e Olindina da Rua Caiapó para atual Padre Roma, na rua acima. É, mas nós estávamos descendo para três ruas abaixo. O novo aluguel seria na General Belegard, 259 fundos, casa 2. Fiquei logo a pensar: "quem moraria na 1?". O sol brilhava no Rio e no Lins de Vasconcelos, bairro modesto da zona norte carioca onde morávamos, quem vinha do nordeste para casa dos tios escapava até a vida melhorar e um dia zarpar.

— Você vai gostar. O moço da casa 1 é cabeludo, toca violão, conversa muito e parece simpático. 

A parte do violão gostei. Em 1978, não havia um conceito musical preconceituoso. Tudo era música, popular ou não, pelo menos na minha cabeça. Isso porque minha irmã já tinha me alertado que ele cantava e tocava bem música popular. Eu mal tinha iniciado os primeiros acordes e só tocava o que todo mundo tocava: a tal “Casa do Sol Nascente”, via que todo coitado que pensa em tocar violão tem que enfrentar. É fácil: passa de lá menor pra mi maior. Fácil. Pra quem?

Chegamos no tal endereço e fomos recebidos por latidos e uma moça de cabelos longos que, sorridente, abriu o portão do longo corredor até a casa 2. Curioso ao passar, olhei para a direita e vi um homem de longos cabelos arrebentando no violão que parecia disco. Era a tal casa 1.

A voz parecia familiar. Sorridente aproximou-se e deu as boas vindas. Quando o olhei reconheci na hora. 

— Rapaz, você não é o Balthazar?

Mesmo de Sergipe, respondeu com sotaque carioca: 

— Sim!

Ficamos amigos na hora e fui lhe contar que em São Luís do Maranhão ele era tão conhecido quanto o rei da jovem guarda. Ele sorriu, parecia não acreditar. Eu disse que sabia cantar suas músicas de cor e soltei meio desafinado:

“Você de uns dias pra cá vem mudando demais o seu modo de ser com muita tristeza no olhar...”.

“Sarah, onde é que você se esconde? Minhas cartas por que não respondes...”.

O cara tocou essas músicas no violão que parecia disco. Demais! Perguntei-lhe quem era Sarah, já que ele na canção não sabia seu paradeiro, sequer se ela ainda estava viva.

“Será que você vive em Israel ou será que você está no céu?”

Olha, eu torci pela primeira opção. Ele me disse que Sarah nunca existiu, era uma mulher imaginada na cabeça de um poeta. Surpreso e assustado com a resposta fiquei. Quase uma decepção para quem só tinha quase 18 anos e a pureza se confundia com incertezas. Iria completar a maior idade só em dezembro. Estávamos no final de outubro. Uma última cartada sobre o paradeiro de Sarah: perguntei para a simpática Denise, sua mulher que na barriga levava um filho seu prestes a nascer. “Será que Sarah não é você?”. A negativa veio num aceno. Ali tive uma certeza: eu sei onde Sarah se esconde. É no Lins.


domingo, 7 de junho de 2020

John Lennon: “nine” no Rio de Janeiro, um sonho

          Lembro-me muito bem do fato. Seguia pela Avenida Rio Branco, centro da capital carioca. Uma música ao longe fazia uma introdução ruidosa que parecia uma guitarra uivante. O som ecoava de uma loja de discos. A impressão de que os acordes e os versos em inglês penetravam na alma fez-me parar e buscar com olhares e ouvidos a fonte sonora.

Era setembro de 1977. Ali perdido entre enormes prédios trabalhava como boy de uma corretora de valores e estava a caminho de um serviço de entrega de documentos. Todo boy que se preza planta numa banca de revista. Eu não. Parava na frente de lojas de discos por hipnose. Descobri a fonte: vinha de uma transversal com a Avenida Rio Branco, chamada Rua do Ouvidor. Conhecidíssima na região. Mais próximo, pude ver a loja e ouvir as últimas frases da canção. Não pude entender o que dizia; parecia um mantra. "Ah! Bowakama, poussé, poussé" cantada e sendo reprisada onze vezes por um coral que parecia confuso com timbres desconexos e uma harmonia estranha, porém extremamente interessante quando os últimos acordes eram feitos por um piano solitário.

  Era o John Lennon de “Imagine”, cantando “Nine dream” em pleno Rio. Era hábito na época dos vinis o som rolar alto para atrair adeptos da arte de caminhar, parar e comprar. A música colou no meu ouvido e não saía mais. Todos os lugares por onde passei a partir dali lembravam essa canção. Não sei explicar porque pessoas e lugares que conheci naquele dia jamais saíram da minha mente, tal foi a identificação com essa música.

Aos 16 anos, vindo do distante Maranhão, tentava aos poucos entender a dinâmica de um grande centro urbano como o Rio. “Nine dream” era realmente um sonho. A canção de Lennon obrigou-me a pesquisar em manuais o sentido do texto, pois a harmonia absurdamente já estava íntegra no meu pensamento. Com gosto pelos estudos, tinha coragem e vontade intensas de compreender o recado do músico britânico. Sorte é que sempre gostei de inglês e tive uma mestra de cabelos curtinhos e muito moderna no Colégio Batista em São Luís que ensinava como ninguém. Pasmem. Era a cópia feminina do ex-beatles. Tinha um óculos de cor azulada com lentes redondas e para susto de todos era portenha e um sotaque que parecia ter vivido anos na terra do tio Sam ou quem sabe em Liverpool. Chamava-se Micaela.

Mais o que há de comum entre John Lennon, Avenida Rio Branco e um sonho? A impressão sonora e a marca ígnea de um dos momentos mágicos da vida: a adolescência.

Estava indo para uma empresa denominada Sperry Remington do Brasil, uma multinacional do setor de máquinas situada na Rua México, paralela à Avenida Rio Branco. Entreguei os documentos e assinei os protocolos para uma recepcionista de longos cabelos e com sotaque gaúcho, mas a música insistia na mente e na curiosidade.

    “So  long  ago, was it in a dream? Was it just a dream?".  A recepcionista tornou-se minha amiga, cortou os cabelos agora curtíssimos e voltou anos depois para sua cidade natal: Porto Alegre. Eu para São Luís.


sexta-feira, 5 de junho de 2020

Agostinho dos Santos, a voz

O objetivo desse blog é relatar os primeiros contatos que tive com a música popular brasileira e mundial desde a mais tenra idade. O tudo que trago vem das primeiras impressões e audições a partir dos sete anos de idade completados em dezembro de 1967, no dia sete. Pelas ondas das Rádios Timbira, Gurupi, Difusora, Educadora e Ribamar tornei-me assíduo ouvinte dos programas musicais na São Luís do Maranhão ainda pacata, no populoso bairro do João Paulo, mais precisamente na pequena casa de dois cômodos onde eu e minha mãe Madalena cantarolávamos as canções românticas que destruíam os corações na Rua São Vicente de Paulo. O pequeno rádio de duas pilhas: amigo certo das horas incertas.

A primeira impressão veio com a voz aveludada e afinada de Agostinho dos Santos. Foi primeira voz a ser ouvida com zelo e admiração numa canção por título “Balada Triste”. Aprendi logo e em poucos dias lá estava o aspirante tentando imitar o mestre:


“Balada triste que me faz lembrar alguém, alguém que existe e que outrora foi meu bem. Balada triste, melodia do meu drama, esse alguém já não me ama esqueceu você também...”

Sempre gostei de prestar atenção no jeito de cantar dos artistas que eu ouvia e imaginando como seriam feitas aquelas belas canções. Os instrumentos, principalmente a voz e o violão, pareciam separados nas minhas observações de criança.

Ao cair da tarde começava o Programa Alegria na Taba na poderosa Rádio Timbira do Maranhão e lá estava Agostinho dos Santos de novo cantando uma faixa por título “A felicidade”. Violão e tamborim marcavam um samba diferente. Pequeno, ainda não entendia, mas falavam ser de um poeta carioca famoso cujos versos diziam:


“Tristeza não tem fim, felicidade sim. A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor brilha tranquila depois de leve oscila e cai como uma lágrima de amor.”

                Chamava-se Vinícius de Moraes o autor dos versos que ecoavam muito bem na voz do cantor. Muito seria falado a seu respeito anos depois ao criar a Bossa Nova junto com o maestro carioca Tom Jobim que se uniu ao violão sofisticado do baiano João Gilberto. Agostinho com eles já estava interpretando e dando vida às canções destes mestres.

Meu sonho um dia era ver de perto o grande cantor e poder aplaudi-lo. Ao entrar em casa numa tarde de julho de 1973 minha mãe me disse: “filho, um avião caiu lá pras bandas da França e um dos passageiros era aquele cantor que você vive imitando”. O silêncio tomou conta da minha voz e do coração de 12 anos. Poderia alguém sobreviver a uma queda de avião? Os jornais traziam a triste notícia: uma das vítimas do trágico acidente em Orly, arredores de Paris, era de fato o cantor paulista Agostinho dos Santos. O Brasil inteiro triste cantou: “Orar é poder converter uma doce ilusão em milagre de amor”. Eu não.