terça-feira, 30 de junho de 2020

“O Pato” de João Gilberto. Em busca do aplauso perdido.

A noite de sexta-feira chegava com lua prateada no centro de São Luís, onde o Restaurante Mag’s se preparava para receber seus finos clientes. Era 1988 e eu era atração musical da MPB de violão e voz no belíssimo lugar com toalhas rendadas até o chão. Público exigente com cardápio, ambiente e música. Um cartaz exibia: “JÔ SANTOS, a voz e o violão”. Os bares e restaurantes da cidade tinham cardápio musical variado por ali e muita gente boa estava surgindo na cena noturna de São Luís do Maranhão.

Pluguei a viola e preparei a voz para pontualmente começar os trabalhos naquela noite às 21 horas. O senso de um músico, quando toca num lugar onde todos comem indiferentes ao invisível cantor ali na frente, vai direto no aplauso que naquela noite parecia que tinha tomado chá de sumiço. Mas quem canta na night, às vezes, se contenta com um simples olhar ou quem sabe algo mais revelador: o aplauso.

Tentei de tudo um pouco, porém a indiferença reinava e tinha vindo pra ficar naquela noite. Nem uma palminha para contar história. O restaurante Mag’s, situado na Rua Rio Branco, estava quase na esquina da praça mais central e mais conhecida de São Luís, a Praça Deodoro e tinha fama de ser um dos melhores da ilha. Fui contratado depois de um teste por Fernando Galotte, um empresário carioca que junto com sua mulher goiana Marilene não estavam no Maranhão a passeio. Com um copo de uísque na mão, o sujeito era uma cópia do Miéle, famoso artista global. Tinha voz grossa alta e grave, porém educadíssimo no trato com pessoas e tinha verdadeira paixão pelas artes culinárias. Era mestre nesse setor. O nome Mag’s era uma homenagem a Dona Marilene.

Noite adentro tentei Cartola e até Milton. Vi meu verão terminando e nada das rosas exalarem algum aplauso. A travessia agonizava e a voz queria parar antes da estrada findar. Apelei para Fagner. Nem aplausos, nem canteiros.

As cortinas já estavam quase baixando, pratos e taças sendo recolhidos e eu perseguindo o aplauso perdido, o objetivo maior de qualquer artista. Quase jogando a toalha fiz uma última tentativa e apelei para uma do bom baiano João Gilberto:


“O Pato vinha cantando alegremente quém, quém

quando o marreco sorridente pediu

para entrar também no samba no samba no samba

O ganso gostou da dupla e fez também quém, quém, quém

Olhou pro cisne e disse assim, vem vem

Que o quarteto ficará bem, muito bom, muito bem

Na beira da lagoa foram ensaiar

para começar o tico-tico no fubá

A voz do pato era mesmo um desacato

Jogo de cena com ganso era mato

Mas eu gostei do final quando caíram n’água

Ensaiando o vocal

Quém, quém, quém

Quém, quém, quém

Quém, quém, quém

Quém, quém, quém."

O restaurante veio abaixo. Aplausos e até assovios. O patrão já com algumas e outras, de taça em punho, exigiu bis. Feliz e realizado com a casa cheia, gorjetas vastas e um aplauso no final.

Sussurrei baixinho: “Eta! João, fico devendo essa”. Clientes se despedindo e o show acabou. Já era madrugada e Fernando me chama para jantar com ele um filé com um bom vinho tinto e repetindo um “quém, quém, quém” que parecia ecoar na casa.

Jô, como sempre, arrasou disse ele. Sorri aliviado e agradeci.

Peguei a viola, o cachê, ego resgatado e fui cantarolando baixinho para o meu destino por ruas vazias da adormecida São Luís:

O pato vinha cantando alegremente...

Paço do Lumiar (MA), 11 de junho de 2020 (quinta feira), às 01h 12min 33s


Um comentário:

  1. O Pato, do genial João Gilberto, é uma música que na época me deixava meio intrigada. Eu ficava imaginando o que teria levado o autor a compor uma música como aquela. Mas, tal qual um chiclete, a danada ficava grudada na nossa cabeça, e sempre que a ouvíamos ficávamos a cantarolar o quém quém. Que sacada genial desse grande compositor. E essa sua experiência mostra bem o que eu, na minha juventude, questionava nesse tremendo sucesso.

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