domingo, 7 de junho de 2020

John Lennon: “nine” no Rio de Janeiro, um sonho

          Lembro-me muito bem do fato. Seguia pela Avenida Rio Branco, centro da capital carioca. Uma música ao longe fazia uma introdução ruidosa que parecia uma guitarra uivante. O som ecoava de uma loja de discos. A impressão de que os acordes e os versos em inglês penetravam na alma fez-me parar e buscar com olhares e ouvidos a fonte sonora.

Era setembro de 1977. Ali perdido entre enormes prédios trabalhava como boy de uma corretora de valores e estava a caminho de um serviço de entrega de documentos. Todo boy que se preza planta numa banca de revista. Eu não. Parava na frente de lojas de discos por hipnose. Descobri a fonte: vinha de uma transversal com a Avenida Rio Branco, chamada Rua do Ouvidor. Conhecidíssima na região. Mais próximo, pude ver a loja e ouvir as últimas frases da canção. Não pude entender o que dizia; parecia um mantra. "Ah! Bowakama, poussé, poussé" cantada e sendo reprisada onze vezes por um coral que parecia confuso com timbres desconexos e uma harmonia estranha, porém extremamente interessante quando os últimos acordes eram feitos por um piano solitário.

  Era o John Lennon de “Imagine”, cantando “Nine dream” em pleno Rio. Era hábito na época dos vinis o som rolar alto para atrair adeptos da arte de caminhar, parar e comprar. A música colou no meu ouvido e não saía mais. Todos os lugares por onde passei a partir dali lembravam essa canção. Não sei explicar porque pessoas e lugares que conheci naquele dia jamais saíram da minha mente, tal foi a identificação com essa música.

Aos 16 anos, vindo do distante Maranhão, tentava aos poucos entender a dinâmica de um grande centro urbano como o Rio. “Nine dream” era realmente um sonho. A canção de Lennon obrigou-me a pesquisar em manuais o sentido do texto, pois a harmonia absurdamente já estava íntegra no meu pensamento. Com gosto pelos estudos, tinha coragem e vontade intensas de compreender o recado do músico britânico. Sorte é que sempre gostei de inglês e tive uma mestra de cabelos curtinhos e muito moderna no Colégio Batista em São Luís que ensinava como ninguém. Pasmem. Era a cópia feminina do ex-beatles. Tinha um óculos de cor azulada com lentes redondas e para susto de todos era portenha e um sotaque que parecia ter vivido anos na terra do tio Sam ou quem sabe em Liverpool. Chamava-se Micaela.

Mais o que há de comum entre John Lennon, Avenida Rio Branco e um sonho? A impressão sonora e a marca ígnea de um dos momentos mágicos da vida: a adolescência.

Estava indo para uma empresa denominada Sperry Remington do Brasil, uma multinacional do setor de máquinas situada na Rua México, paralela à Avenida Rio Branco. Entreguei os documentos e assinei os protocolos para uma recepcionista de longos cabelos e com sotaque gaúcho, mas a música insistia na mente e na curiosidade.

    “So  long  ago, was it in a dream? Was it just a dream?".  A recepcionista tornou-se minha amiga, cortou os cabelos agora curtíssimos e voltou anos depois para sua cidade natal: Porto Alegre. Eu para São Luís.


Nenhum comentário:

Postar um comentário