segunda-feira, 13 de julho de 2020

“Um homem chamado Alfredo” de Toquinho e Vinícius. O solitário da casa abaixo.

Na Rua General Belegard, no Lins, onde eu morava em 1978, três casas abaixo morava um solitário de humanos indesejáveis e recheado de felinos amigos. Era seu Antônio e as crianças da região tinham medo dele. Eu não.

Era gentil, educado e atencioso com quem por cima da grade lhe desejasse um bom dia. Seu aspecto desconfiado e vestido num velho pijama tornava sua figura alvo de várias teorias da conspiração. Alguns diziam: “esse senhor aí, não sei não”.

Pouco se sabia dele. Se era casado? Se tinha filhos? Por que criava tantos gatos? Como conseguia ser tão só? Isso me incomodava. Se era só, com quem conversava?

Ao passar, costumava encostar na grade e conversar muito com ele. O que descobri é que o único defeito que tinha era ser solitário. Ninguém sabia por que, carregava um quê de compaixão que o tornava inofensivo. Parecia culto e amável.

Uma vez ousei perguntar:

Seu Antônio, por que é tão sozinho?

 Ele sorrindo respondeu:

Não, João, não sou tão só assim. Tenho você que conversa comigo, meus gatos e a Rosa.

A Rosa? indaguei.

Sim. Peguei bebezinha e repete barbaridade:

 Antônio, Antônio, Antônio!

Ouviu?

 Realmente lá de dentro do casarão vinha um som chamando. Educadamente se despediu e entrou.

Anos depois, quando subi ao altar, vejo todo arrumado seu Antônio sentadinho no lado do noivo e fiquei feliz. Acenei para ele que me respondeu com um tímido sorriso. No final do casamento o perdi de vista para sempre. Foi a primeira vez que o vi fora da velha casa e a última também.

Vim para São Luís e escrevia para minha irmã da General. Sempre perguntava por seu Antônio. Uma das vezes ela me disse que tinha sido encontrado desfalecido em seu velho casarão só com seus amigos felinos e o velho papagaio. Nada pôde ser feito. Os vizinhos ajudaram na despedida. Triste fiquei. Lágrimas desfilavam vagarosamente por minha face.

Quando ouço “Um homem chamado Alfredo” de Toquinho e Vinícius lembro-me com carinho daquele bom homem e da sua eterna solidão. Impressionado com o realismo da letra penso: “Não seria um homem chamado Antônio?”. Os acordes suaves do violão iniciam os versos:

 

“O meu vizinho do lado

Se matou de solidão.

Ligou o gás o coitado

O último gás do bujão.

Porque ninguém o queria.

Ninguém lhe dava atenção.

Porque ninguém mais lhe abria

As portas do coração.

Levou com ele seu louro

E um gato de estimação.

Há tanta gente sozinha

Que a gente mal adivinha.

Gente sem vez para amar,

Gente sem mão para dar,

Gente que basta um olhar,

Quase nada.

Gente com os olhos no chão

Sempre pedindo perdão.

Gente que a gente não vê porque é

Quase nada.

Eu sempre o cumprimentava

Porque parecia bom.

Um homem por trás dos óculos,

Como diria Drummond.

Num velho papel de embrulho

Deixou um bilhete seu:

Dizendo que se matava

De cansado de viver.

Embaixo assinado Alfredo,

Mas ninguém sabe de quê.

(Toquinho e Vinícius)

 Trinta e poucos anos se passaram, quando olho o álbum de casamento onde eu e minha mulher estávamos em maio de 84 e vejo sentadinho lá atrás, num paletó à caráter, o seu Antônio, digo baixinho: “Eu sei o seu nome e sobrenome completos. É Antônio do Bom Coração Amigo”.

Paço do Lumiar (MA), domingo, dia 14 de junho de 2020 às 09h12min06s


2 comentários:

  1. Que lembrança bonita, João! Não me recordo dessa música do Tom e Vinicius. Pela letra parece realmente remeter ao seu contato com o Sr. Antônio, que vivia de modo estranho, até podendo parecer suspeito à maioria da vizinhança. Só que você, em sua intuição questionadora, pode constatar a bela pessoa que existia naquele ser estranho. Seus motivos por ele viver solitário você não pode conhecer. Talvez por você ser ainda tão jovem, ele não tenha se sentido à vontade de expô-los. O fato dele estar presente em seu casamento foi a maior demonstração do quanto você foi luz na solidão do Sr. Antônio, esse homem estranho e gentil. É triste a forma como ele se foi, sem que nunca ninguém soubesse o porquê de uma vida tão só.

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    1. Obrigado, Dayse pelo comentário. O incrível é que seu Antônio estava na São Jaime em maio de 1984 e você também. Vocês estavam próximos. Seu Antônio me marcou pela solidão e pela gentileza ao falar; falava baixo e com voz doce. Era muito misterioso e nada se sabia dele. Só da solidão. Morreu sozinho com seus bichinhos e me deixou bem triste. Várias vezes o convidei para ir lá em casa. Agradecia, mas recusava. Uma pessoa marcante na minha vida.

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