quarta-feira, 9 de setembro de 2020

“Lay lady lay”. Dylan e o seminário.

Bob Dylan já era conhecido dos amantes de sons interplanetários em 1978. Naquele ano cismei de entrar para o Seminário São José para ser padre. Melhor: mudar o mundo. No primeiro encontro com meu diretor espiritual, o recém ordenado Padre Edson Homem, fui logo alertado que a missão era outra: evangelizar. Pensei rápido: será que estou no lugar certo?

Confuso como todo adolescente de 17 anos e empolgado com a convivência humana e idealizada dos grupos jovens da época pensei por que não? Na Paroquia São Jaime, no Lins, alguns já me chamavam de reverendo e uns até me idealizavam celebrando seus casamentos.

Quando me vi já estava lá convivendo numa rotina de estudos, orações e rock. Pasmem. A galera quando se reunia no final de domingo após trabalhos pastorais nas suas paróquias trocavam os acordes sacros por Beatles, Bee Gees e Peter Frampton. Tinha vida musical no Seminário Menor destinados aos garotos do ensino médio. Os que faziam Filosofia e Teologia quase padres estudavam no anexo Maior.

Mas alguém inovou e trouxe algo diferente. Os garotos enchiam o Cascadura-Estácio da linha 607 e vinham de todos os cantos do grande Rio, principalmente subúrbio. Era no ponto final na Avenida Paulo de Frontin que o seminário ficava e ali era uma mistura de Tijuca, Estácio e Rio Comprido. Esse era Raphael que sempre trazia desafios novos para a galera da viola. Ele era de Cascadura e eu do Lins de Vasconcelos. Outros vinham de Bangu, Madureira e de Ricardo de Albuquerque que nem sabia que existia no Rio. Mas Lucas lá morava e já nos tinha convidado para uma visita. Só um porém apareceu: é longe.

Era “Lay lady lay” de Bob Dylan. A sequência é fácil e segue uma combinação harmônica previsível, alegava o empolgado Raphael. Fácil pra ele. Ali poucos faziam uma pestana audível e eu ainda estava tentando me adaptar aos horários da casa de formação.

Bob mandava bem e estourado estava na boca e nos acordes da galera alternativa. O carinha tinha fama de fazer uma música de protesto antenada com questões sociais e até políticas. Eu não. A minha antena estava voltada para aprender “Lay Lady Lay” sem pestana: a maldição de todo aspirante às seis cordas. Pouco provável. A tal pressão sobre as cordas com um dedo só estava em quase todas as músicas do americano de Minnesota.

A canção era figurinha constante na programação tanto de AM’s quanto de FM’s na capital carioca e dizia:

“Lay Lady Lay

Lay across my big brass bed

Lay lady lay

Lay across my big brass bed

 

Whatever colors you have in your

Mind

I show them to you and you see

Them shine

 

Lay lady lay...”

Com o tempo, saudade dos meus amigos e a rígida disciplina do seminário me fizeram acreditar que ali minha vocação não estava. Nada contra o seminário. Os padres eram legais. inclusive o Padre Mazine tratava todos como filhos. Alegre e carismático, o padre que trocou o Ceará pelo Rio, não media esforços para nos sentirmos animados na fé e na vocação. Ele era um exemplo como prefeito do seminário. O futebol era uma de suas paixões e se divertia com o futebol total onde todos corriam atrás da mesma bola. Menos o filósofo Pedro Paulo que dizia aquilo ser rude demais, preferia seus livros. Mazine ficava entusiasmado com uma ordenação sacerdotal porque a missão estaria cumprida. “A messe é grande e os operários são menos ainda”, dizia parafraseando com texto sagrado.

O negócio é que cada um pertencia a um grupo. Lucas dos atletas da pelota, Pedro Paulo dos filósofos, Milton dos compositores, Raphael dos instrumentistas e Stanislau dos especialistas em agulhas, pois era diabético e sabia tudo da doença. Eu era um peixe fora d’água e só queria estar com meus amigos do grupo jovem da minha paróquia, tocar nas missas, jogar conversa fora, dançar Bee Gees e ir para casa. Agora a rotina era outra. Depois da missa do domingo à noite pegar o 607 na Rua Maria Antônia e rumar para o Estácio.

Mas em setembro veio a despedida. Deixei o seminário e decidi buscar outro caminho. Quem sabe a música ou o magistério ou ambos. Nunca mais tive notícias dos meus amigos da casa de formação a não ser anos depois. Levei comigo ótimas lições e cultura. Pensei: quantos irão até o final?

Raphael virou roqueiro e um padre se preparava para uma entrevista quando algo me chamou a atenção. A moça morena de longos cabelos no Bom Dia Rio anunciou o entrevistado para falar da campanha da fraternidade. Com vocês o Padre Pedro Paulo. Com alegria vi o jovem sacerdote de longa batina preta discorrer filosoficamente sobre o tema. Não é que o cara chegou lá?! Senti uma ponta de admiração e um pouco da nada politicamente correta inveja.

Um dia, ao ligar a televisão, vejo em um programa dominical uma atração anunciada com entusiasmo pelo mestre de cerimônias. Barba longa, jeans clássico, óculos azul, tênis e um violão negro com cordas brilhantes o ilustre convidado. Era Bob Dylan. Mas a música não era mais "Lay Lady Lay".  Com forte voz anasalada e rouca tocou “Blowin in the Wind”. De novo corri para o violão e tentei com pestana e tudo aprender a nova canção. Nova pra mim. Ela já era estourada desde os tempos do Seminário São José. Ou melhor, desde os primórdios quando de fraldas eu ainda engatinhava no chão da casa em São Luís do Maranhão vinte e cinco anos atrás. O seminário continuou formando sacerdotes e Bob Dylan fazendo lendárias canções com pestanas improváveis. E eu tentando mudar o mundo. 

Paço do Lumiar (MA), domingo, 21 de junho de 2020 às 18h06min36s  

 

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