Sobre o meu pai pouco sei, só o que contam. Mal tive tempo de conhecê-lo. Com seis anos via o velho trabalhando numa oficina e pouquíssimas imagens ainda restam da sua figura na minha memória. Dos carros e da graxa eu lembro bem.
Mas sei e lembro que um dia num Gordini fomos ao centro de São Luís passear. Era carnaval e o ano 1966. De gorro na cabeça e serpentinas num saco que as pessoas jogavam umas nas outras achava tudo muito estranho e nada entendia.
Sem perceber que minha mãe havia saído do carro e que já não estava mais ali entrei em desespero absurdo. Eu a vi numa rua distante enquanto o carro se afastava. O carnaval para mim acabou ali. Nunca tinha me afastado tanto dela. Ela estava indo embora?
Ouvi ao longe uma música que iniciava com um violão e prosseguia uma
bela voz feminina:
“Mangueira
teu cenário é uma beleza
Que a
natureza criou...”
Vista
assim do alto
Mais
parece um céu no chão
Sei
lá em mangueira poesia feito mar
Se
alastrou e a beleza do lugar
Pra
se entender tem que se achar
Que a
vida não é só isso que se vê
É um
pouco mais
Que
os olhos não conseguem perceber
E as
mãos não ousam tocar
E os
pés recusam pisar
Sei
lá, não sei
Sei
lá, não sei
Não
sei se toda beleza de que lhes falo
Sai
tão somente do meu coração
Em
mangueira poesia num sobe
E
desce constante
Anda
descalça ensinando
Um
modo novo da gente viver
De pensar
e sonhar de sofrer
Sei
lá não sei, sei lá não sei não
A
mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação”
Aqui parecia que a orquestra subia de tom e mais tarde percebi que realmente todos subiram um tom acima e a cantora repetia os versos. A sanfona ao fundo arrasava.
Com lágrimas nos puxados olhos e de ouvidos atentos à música que àquela altura já tinha pandeiro, cavaquinho, tamborim e até uma sofisticada sanfona que não era comum no samba fui me conformando com a ausência materna, pois todos estavam tranquilos, inclusive o meu irmão com cara de poucos amigos. Ele parecia não gostar nem um pouco do ridículo cone enfiado na cabeça e as roupas coloridas.
Quando chegamos em casa, quem vejo toda animada preparando o jantar com a vovó Isaura, figura que veio morar lá em casa e conquistou todo mundo inclusive meu pai Severino que a respeitava com se sua mãe fosse: Dona Madá. Senhora minha mãe inteirinha.
Disfarcei e mandei:
— Mamãe, você aqui!
Só podia ser um milagre. Como? Ela estava ali pertinho de mim de novo. Agarrei sua saia e falei baixinho:
— Não faça mais isso. — Sem entender, ela sorriu.
Em 1967 meu pai nos deixou. Era janeiro e iria fazer sete anos em dezembro. Em 1983 minha mãe também foi se encontrar com ele no céu. Era março e eu iria fazer 23 anos em dezembro. Anos depois soube que tanto minha vó Isaura quanto a divina Elizeth Cardoso também estavam juntas no céu e rindo desse milagre.
Um dia morando no Rio passei perto da Mangueira de Elizeth, de Cartola e de tantos poetas. Olhei para o céu e pude entender melhor a letra que a divina cantava:
“A Mangueira é tão grande que nem cabe explicação”.
Paço do Lumiar (MA),
sexta-feira, 19 de junho de 2020 às 05h21min33s
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