sábado, 1 de agosto de 2020

“Sei lá, mangueira” com Elizeth Cardoso. A divina e o milagre.

Sobre o meu pai pouco sei, só o que contam. Mal tive tempo de conhecê-lo. Com seis anos via o velho trabalhando numa oficina e pouquíssimas imagens ainda restam da sua figura na minha memória. Dos carros e da graxa eu lembro bem.

Mas sei e lembro que um dia num Gordini fomos ao centro de São Luís passear. Era carnaval e o ano 1966. De gorro na cabeça e serpentinas num saco que as pessoas jogavam umas nas outras achava tudo muito estranho e nada entendia.

Sem perceber que minha mãe havia saído do carro e que já não estava mais ali entrei em desespero absurdo. Eu a vi numa rua distante enquanto o carro se afastava. O carnaval para mim acabou ali. Nunca tinha me afastado tanto dela. Ela estava indo embora?

Ouvi ao longe uma música que iniciava com um violão e prosseguia uma bela voz feminina:

 

“Mangueira teu cenário é uma beleza

Que a natureza criou...”

Vista assim do alto

Mais parece um céu no chão

Sei lá em mangueira poesia feito mar

Se alastrou e a beleza do lugar

Pra se entender tem que se achar

Que a vida não é só isso que se vê

É um pouco mais

Que os olhos não conseguem perceber

E as mãos não ousam tocar

E os pés recusam pisar

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei

Não sei se toda beleza de que lhes falo

Sai tão somente do meu coração

Em mangueira poesia num sobe

E desce constante

Anda descalça ensinando

Um modo novo da gente viver

De pensar e sonhar de sofrer

Sei lá não sei, sei lá não sei não

A mangueira é tão grande

Que nem cabe explicação”

Aqui parecia que a orquestra subia de tom e mais tarde percebi que realmente todos subiram um tom acima e a cantora repetia os versos. A sanfona ao fundo arrasava.

Com lágrimas nos puxados olhos e de ouvidos atentos à música que àquela altura já tinha pandeiro, cavaquinho, tamborim e até uma sofisticada sanfona que não era comum no samba fui me conformando com a ausência materna, pois todos estavam tranquilos, inclusive o meu irmão com cara de poucos amigos. Ele parecia não gostar nem um pouco do ridículo cone enfiado na cabeça e as roupas coloridas.

Quando chegamos em casa, quem vejo toda animada preparando o jantar com a vovó Isaura, figura que veio morar lá em casa e conquistou todo mundo inclusive meu pai Severino que a respeitava com se sua mãe fosse: Dona Madá. Senhora minha mãe inteirinha.

Disfarcei e mandei:

Mamãe, você aqui!

Só podia ser um milagre. Como? Ela estava ali pertinho de mim de novo. Agarrei sua saia e falei baixinho:

Não faça mais isso. Sem entender, ela sorriu.

Em 1967 meu pai nos deixou. Era janeiro e iria fazer sete anos em dezembro. Em 1983 minha mãe também foi se encontrar com ele no céu. Era março e eu iria fazer 23 anos em dezembro. Anos depois soube que tanto minha vó Isaura quanto a divina Elizeth Cardoso também estavam juntas no céu e rindo desse milagre.

Um dia morando no Rio passei perto da Mangueira de Elizeth, de Cartola e de tantos poetas. Olhei para o céu e pude entender melhor a letra que a divina cantava:


“A Mangueira é tão grande que nem cabe explicação”.

Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 19 de junho de 2020 às 05h21min33s


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