segunda-feira, 10 de agosto de 2020

“Feelings” de Morris Albert. Made in Brazil.

A impressão que se tem ao ouvir uma canção em inglês é uma só: foi feita por americanos. Muitos esquecem que The Beatles e Rolling Stones eram ingleses. Cantar em outra língua é chique dando status ao idealizador da façanha.

Em inglês, a língua do mundo, nem se fala. Lá pelos setenta estava na moda tal façanha e muitos cantores se atreveram a enrolar a língua e se arriscar em ganhar o mundo surfando na fonética do Tio Sam.

Muitos se americanizaram até no nome e caprichavam nas aulinhas de inglês para fazer bonito. Entre eles um me chamou a atenção. Pouco ou quase nada eu sabia do cantor que estava nas paradas de sucesso com uma música muita melodiosa e quase sonolenta para os padrões da época.

Eu tinha 14 anos e estávamos em 1974. Era época de Tina Charles, a inglesinha do barulho que botava todo mundo pra requebrar com os hits “I love to love”, “Dance little dance” e “You set my heart on fire”. Mas o romantismo das lentinhas também vingavam e foi por aí que o moço entrou.

Era Morris Albert e a música “Feelings”, suspirada até hoje pelos sessentões nostálgicos, virou hit nacional e internacional indo parar em personagem de novela global.

 

“Feelings, nothing more than feelings

Trying to forget my feelings of love

Teardrops rolling down on my face

Trying to forget my feelings of love...”

Mesmo sem saber nada do que estava sendo dito muita gente se arriscava por aí. Inclusive eu, como se tivesse um peso na língua buscava o improvável: pronunciar latinamente o inglês britânico original.

Só que o cantor não era inglês, nem americano lá do norte. Era brasileiro. Com um inglês perfeito ou quase, o cara conquistou o Brasil e o mundo. Morris nasceu Maurício Alberto e era paulista.

O caminho estava aberto, mas os paulistas da banda Os Pholhas e os pernambucanos dos Trepidant’s já arrasavam corações. “She made me cry” e “Remember me” já estavam nas paradas. O inglês chegou e ficou. Eram todos “Made in Brazil”.

Paço do Lumiar (MA), sábado, 20 de junho de 2020 às 08h53min09s


sábado, 8 de agosto de 2020

E Zeca pôs “Lenha” na velha MPB. O profeta.

O Reviver era o ponto de encontro dos artistas de todas as tendências na zona boêmia de São Luís. Refúgio dos amantes das delícias culinárias, escola de futuros admiradores de tudo que a noite oferece. Boa música, cerveja gelada e gente circulando para olhar e ser olhado.

Foi lá que descobri pela primeira vez a voz e o talento de um cara que de violão em punho e a voz no coração mandava o velho Roberto Carlos de um jeito novo.

Parei para ouvir. Era um desses barzinhos da moda chamado Maria Mariá, no coração da boêmia maranhense.

De boné, que quase parecia uma boina, e voz grave e forte o cantor começou a chamar a atenção pelo estilo meio Oswaldo Montenegro de transformar velhos sucessos em trabalhos inéditos.

Era final dos anos 80 e precisávamos de novos nomes na MPB. Comentei com Jorge Henrique, cantor com o qual dividi o palco várias vezes junto com o grande Roberto Rafa, que o rapaz era muito bom.

E era mesmo. Fiz uma profecia: esse rapaz será nome no Brasil em pouco tempo. Será um nome novo na velha MPB que já cansou da mesmice. Jorge, que fazia Djavan como ninguém, concordou.

Mesmo com nome de profeta não poderia supor que acertaria. O cantor sumiu e não foi mais visto. Dizem ter ido para o sul maravilha, como Ubiratan Sousa costuma dizer em conversas para dar uma espetada no pessoal que não respeita o povo aqui de cima. Mas é uma metáfora ou uma metonímia quem sabe. O que todo mundo sabe é que se você tem que acontecer, é melhor no Rio ou em São Paulo. Lá está o grande circo e as possibilidades. Esses estados geograficamente pertencem à Região Sudeste.

Ligo a TV nos anos 90 para assistir ao programa Sem Censura na antiga TVE (canal 2) e vejo Leda Nagle anunciar as atrações do dia. Entre eles o jovem compositor maranhense de nome José. Ele estava lá divulgando seu primeiro álbum “Por onde andará Stephen Fry?”. Com simpatia, elegância e inteligência logo a todos conquistou, apesar do mau humor inicial da apresentadora quando disse que era do Maranhão. Lembro-me da cena: pegou o CD, olhou, colocou de lado e perguntou: “E aí?”. José descascou a apresentadora quando disse que estava em São Paulo e andava na turma do estouradíssimo Chico César da Paraíba. A mulher pegou o CD de volta sorriu e se encantou.

Uma a uma suas músicas foram chegando ao Brasil na voz de grandes intérpretes. Mas uma se destacou e colocou fogo na MPB pobre de novidade. Na verdade como eu já havia profetizado.  “Lenha” trazia versos simples e melodia fácil, mas foi suficiente para incendiar o Brasil e o colocar como um dos melhores compositores da nova safra.

Nas vozes de Simone e Ney Matogrosso “Lenha” viajou. Porém na voz da também maranhense Rita Ribeiro, que hoje assina Rita Benneditto, a canção do José aconteceu no Maranhão e no Brasil. Dona Yolanda, minha sogra baiana de nascimento e carioca de vida, já conhecia e apreciava a cantora maranhense que dava vida a jovens compositores vindos da terra de Gonçalves Dias.

 

“Eu não sei dizer o quer dizer o que vou dizer

Eu amo você, mas não sei o que isso quer dizer

eu não sei porque eu teimo em dizer que amo você

Se eu não sei dizer o que quer dizer o que vou dizer

Se eu digo pare, você não repare

No que possa parecer

Se eu digo siga, o que quer que eu diga

Você não vai entender, mas se eu digo venha

Você traz a lenha pro meu fogo acender”.

Hoje quando chega nos grandes canais é anunciado como estrela de primeira grandeza. Compositor, cantor, instrumentista, criador de trilhas e diretor de espetáculos pelo Brasil e o mundo. Arari e o Maranhão vibram quando alguém anuncia: “Com vocês, Zeca Baleiro”.

                                                        Paço do Lumiar (MA), sábado, 20 de junho de 2020 às 06h11min22s


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

“Inútil paisagem” com “Os Cariocas”. A culpada.

Num lugar onde se respira música, todos são vítimas das influências. Minhas filhas já nasceram nesse ambiente e herdaram o gosto pela arte desde a mais tenra idade. Uma delas começou a batucar numa pequena lata de neston e quando abri os olhos já estava me acompanhando em shows pela noite e teatros de São Luís. Era a mais velha. A mais nova era muito pequena.

Nossos ensaios eram rápidos porque bastava eu colocar um “Escravo da Alegria” de Toquinho e Vinícius no violão, o ritmo já estava em cima na divisão correta. Como? Não sei.

Era surpreendente. Nem percussionistas mais experientes tinham aquela mão suave e cheia de cadência. E olhe que toquei com muita gente boa.

O bom humor sempre acompanhou a escolha de repertório e a concentração também. Mas houve um problema com uma canção de Tom Jobim e a culpa foi da Talita. Ao encerrar a canção “Inútil paisagem” o afinadíssimo grupo vocal Os Cariocas usa um “é nada” que Talita começou a repetir e o riso soltou frouxo. Pronto. Eu amolecia e não saía mais nada até o riso ir embora. A carinha dela colou no meu ouvido junto com seu sorriso que a melodiosa canção exaltava: é nada.

A partir dali não conseguia mais cantar quando chegava nesta parte. Cheguei a excluir a canção de shows com medo de ter um ataque histérico de riso diante de uma plateia. Quem iria entender? Se a menina estivesse ali, coitado de mim.

Não era simplesmente o “é nada”. Era o jeito juvenil com o qual tinha pronunciado. E na primeira vez imortalizou.

Mas “Inútil paisagem” fala de amor e na talentosa execução “Os Cariocas” modernamente arrasavam:

                                     “Mais pra quê?

Pra quê tanto céu?

Pra quê tanto mar?

Pra quê?

De que serve esta onda que quebra?

E o vento da tarde?

De que serve a tarde?

Inútil paisagem.

Pode ser que não venhas mais, que não venha nunca mais.

De que servem as flores que nascem pelos caminhos se o meu caminho sozinho é nada”.

No tribunal do coração infelizmente Talita foi declarada culpada. Culpada por ter uma gargalhada forte e vibrante quando divide no quarto alegrias com a irmã mais nova. Culpada por ter no seu pai o maior fã. Culpada de nada. O culpado é o Tom Jobim.

 Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 19 de junho de 2020 às 06h51min31s


sábado, 1 de agosto de 2020

“Sei lá, mangueira” com Elizeth Cardoso. A divina e o milagre.

Sobre o meu pai pouco sei, só o que contam. Mal tive tempo de conhecê-lo. Com seis anos via o velho trabalhando numa oficina e pouquíssimas imagens ainda restam da sua figura na minha memória. Dos carros e da graxa eu lembro bem.

Mas sei e lembro que um dia num Gordini fomos ao centro de São Luís passear. Era carnaval e o ano 1966. De gorro na cabeça e serpentinas num saco que as pessoas jogavam umas nas outras achava tudo muito estranho e nada entendia.

Sem perceber que minha mãe havia saído do carro e que já não estava mais ali entrei em desespero absurdo. Eu a vi numa rua distante enquanto o carro se afastava. O carnaval para mim acabou ali. Nunca tinha me afastado tanto dela. Ela estava indo embora?

Ouvi ao longe uma música que iniciava com um violão e prosseguia uma bela voz feminina:

 

“Mangueira teu cenário é uma beleza

Que a natureza criou...”

Vista assim do alto

Mais parece um céu no chão

Sei lá em mangueira poesia feito mar

Se alastrou e a beleza do lugar

Pra se entender tem que se achar

Que a vida não é só isso que se vê

É um pouco mais

Que os olhos não conseguem perceber

E as mãos não ousam tocar

E os pés recusam pisar

Sei lá, não sei

Sei lá, não sei

Não sei se toda beleza de que lhes falo

Sai tão somente do meu coração

Em mangueira poesia num sobe

E desce constante

Anda descalça ensinando

Um modo novo da gente viver

De pensar e sonhar de sofrer

Sei lá não sei, sei lá não sei não

A mangueira é tão grande

Que nem cabe explicação”

Aqui parecia que a orquestra subia de tom e mais tarde percebi que realmente todos subiram um tom acima e a cantora repetia os versos. A sanfona ao fundo arrasava.

Com lágrimas nos puxados olhos e de ouvidos atentos à música que àquela altura já tinha pandeiro, cavaquinho, tamborim e até uma sofisticada sanfona que não era comum no samba fui me conformando com a ausência materna, pois todos estavam tranquilos, inclusive o meu irmão com cara de poucos amigos. Ele parecia não gostar nem um pouco do ridículo cone enfiado na cabeça e as roupas coloridas.

Quando chegamos em casa, quem vejo toda animada preparando o jantar com a vovó Isaura, figura que veio morar lá em casa e conquistou todo mundo inclusive meu pai Severino que a respeitava com se sua mãe fosse: Dona Madá. Senhora minha mãe inteirinha.

Disfarcei e mandei:

Mamãe, você aqui!

Só podia ser um milagre. Como? Ela estava ali pertinho de mim de novo. Agarrei sua saia e falei baixinho:

Não faça mais isso. Sem entender, ela sorriu.

Em 1967 meu pai nos deixou. Era janeiro e iria fazer sete anos em dezembro. Em 1983 minha mãe também foi se encontrar com ele no céu. Era março e eu iria fazer 23 anos em dezembro. Anos depois soube que tanto minha vó Isaura quanto a divina Elizeth Cardoso também estavam juntas no céu e rindo desse milagre.

Um dia morando no Rio passei perto da Mangueira de Elizeth, de Cartola e de tantos poetas. Olhei para o céu e pude entender melhor a letra que a divina cantava:


“A Mangueira é tão grande que nem cabe explicação”.

Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 19 de junho de 2020 às 05h21min33s