Toda manhã minha mãe Maria Madalena penteava as longas madeixas negras e cantava:
“Ai, quantas lágrimas eu tenho derramado
Só em saber que não posso mais reviver o meu
passado
Eu vivia cheio de esperança e de alegria
Eu cantava, eu sorria
Mais hoje em dia eu não tenho mais
A alegria dos tempos atrás
A melancolia dos meus olhos trazem
Ai quanta saudade a lembrança traz
Se houvesse retrocesso na idade
Eu não teria saudade da minha mocidade”.
Fico até hoje impressionado com esta música e mais impressionado ainda com minha mãe que repetia várias vezes os versos. Onde ela aprendeu essa música? Como aprendeu? Com quem? Eu nunca soube. Muito pequeno ainda, pois era 1969 e com apenas 9 anos me limitava a ouvir e gostar.
Só sei que gostava muito. Era um samba que iniciava com uma marcação magistral de um pandeiro e depois entrava um violão com baixo marcante. A voz da cantora entrava a seguir.
Era Cristina Buarque de Holanda, soube mais tarde. Madalena conhecia a canção sem conhecer a cantora. Pouco se sabia dela. Tinha voz bonita e afinada.
Perguntei aos mais velhos. Ninguém conhecia. Era uma desconhecida. Alguém lembrou que pelo sobrenome seria parente de alguém conhecido. Seria do famoso homem das letras do vocabulário, afinal todos o consultavam. Fiquei no ar sem entender. Acho que falavam do Aurélio Buarque de Holanda, o homem do dicionário.
Nas rodinhas de violão da turma da rua onde os mais velhos tocavam “Vendi os bois” dos Incríveis e “Animais irracionais” de Dom e Ravel ninguém sequer havia sido informado de uma sambista chamada Cristina. Conheciam Elizeth Cardoso da “vista assim do alto mais parece um céu no chão” e a voz rouca e forte de Elza Soares na célebre “lá vem a bateria da Mocidade Independente não existe mais quente...”
Era mesmo desconhecida. O mais interessante é que Madalena não chorava e nem derramava um gesto sequer de tristeza. Invocado perguntei: a música não lhe faz chorar? Ela respondeu que não e só trazia boas lembranças da sua infância que logo eram relatadas com riqueza de detalhes. Tempos no Piauí que jamais esquecera.
Maria Madalena era de José de Freitas e meu pai Severino de Guarabira na Paraíba e eu era grato pelo dom da vida, mas nunca soube direito como esses dois se encontraram lá pras bandas do Piauí. Havia muita prosa a respeito dos mais velhos e criança não ficava por perto para bisbilhotar.
Era demais para uma cabeça de nove anos. O tempo passou e continuo sem saber por onde Cristina anda. Será irmã daquele famoso compositor carioca? Continua contando ou cantando as lágrimas?
Paço do Lumiar (MA),
sexta-feira, 12 de junho de 2020 às 07h7min02s
Caramba, só em ler no título de sua crônica o “ Quantas lágrimas “, imediatamente me veio à cabeça não só a música em si, como também a voz da cantora. É impressionante o poder de uma música em nós! A música tem uma enorme capacidade de nos levar longe em nossas lembranças. Por isso é que se diz que a música é mágica, é vida.
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