segunda-feira, 6 de julho de 2020

“Quantas lágrimas” de Cristina Buarque de Holanda. Madalena canta a desconhecida.

Toda manhã minha mãe Maria Madalena penteava as longas madeixas negras e cantava:


“Ai, quantas lágrimas eu tenho derramado

Só em saber que não posso mais reviver o meu passado

Eu vivia cheio de esperança e de alegria

Eu cantava, eu sorria

Mais hoje em dia eu não tenho mais

A alegria dos tempos atrás

A melancolia dos meus olhos trazem

Ai quanta saudade a lembrança traz

Se houvesse retrocesso na idade

Eu não teria saudade da minha mocidade”.

Fico até hoje impressionado com esta música e mais impressionado ainda com minha mãe que repetia várias vezes os versos. Onde ela aprendeu essa música? Como aprendeu? Com quem? Eu nunca soube. Muito pequeno ainda, pois era 1969 e com apenas 9 anos me limitava a ouvir e gostar.

Só sei que gostava muito. Era um samba que iniciava com uma marcação magistral de um pandeiro e depois entrava um violão com baixo marcante. A voz da cantora entrava a seguir.

Era Cristina Buarque de Holanda, soube mais tarde. Madalena conhecia a canção sem conhecer a cantora. Pouco se sabia dela. Tinha voz bonita e afinada.

Perguntei aos mais velhos. Ninguém conhecia. Era uma desconhecida. Alguém lembrou que pelo sobrenome seria parente de alguém conhecido. Seria do famoso homem das letras do vocabulário, afinal todos o consultavam. Fiquei no ar sem entender. Acho que falavam do Aurélio Buarque de Holanda, o homem do dicionário.  

Nas rodinhas de violão da turma da rua onde os mais velhos tocavam “Vendi os bois” dos Incríveis e “Animais irracionais” de Dom e Ravel ninguém sequer havia sido informado de uma sambista chamada Cristina. Conheciam Elizeth Cardoso da “vista assim do alto mais parece um céu no chão” e a voz rouca e forte de Elza Soares na célebre “lá vem a bateria da Mocidade Independente não existe mais quente...”

Era mesmo desconhecida. O mais interessante é que Madalena não chorava e nem derramava um gesto sequer de tristeza. Invocado perguntei: a música não lhe faz chorar? Ela respondeu que não e só trazia boas lembranças da sua infância que logo eram relatadas  com riqueza de detalhes. Tempos no Piauí que jamais esquecera.

Maria Madalena era de José de Freitas e meu pai Severino de Guarabira na Paraíba e eu era grato pelo dom da vida, mas nunca soube direito como esses dois se encontraram lá pras bandas do Piauí. Havia muita prosa a respeito dos mais velhos e criança não ficava por perto para bisbilhotar.

Era demais para uma cabeça de nove anos. O tempo passou e continuo sem saber por onde Cristina anda. Será irmã daquele famoso compositor carioca? Continua contando ou cantando as lágrimas?

Paço do Lumiar (MA), sexta-feira, 12 de junho de 2020 às 07h7min02s


Um comentário:

  1. Caramba, só em ler no título de sua crônica o “ Quantas lágrimas “, imediatamente me veio à cabeça não só a música em si, como também a voz da cantora. É impressionante o poder de uma música em nós! A música tem uma enorme capacidade de nos levar longe em nossas lembranças. Por isso é que se diz que a música é mágica, é vida.

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